Quanto falta para que seu carro possa se dirigir sozinho
Ă tarde da noite na regiĂŁo metropolitana de Phoenix, no Arizona (Estados Unidos).
Sob o brilho artificial da iluminação pĂșblica, um carro pode ser visto se aproximando lentamente. Sensores ativos sobre o veĂculo emitem um zumbido baixo. Uma letra "W" verde e azul brilha no para-brisa, fornecendo apenas luz suficiente para olhar para o interior do carro - e podemos ver o assento do motorista vazio.
O freio Ă© firmemente ativado, o carro estaciona e uma notificação de chegada soa no telefone da pessoa que o aguarda. Quando o passageiro abre a porta para entrar, uma voz o cumprimenta pelo sistema de som do veĂculo: "boa noite, este carro Ă© todo seu - sem ninguĂ©m sentado na frente".
Esse Ă© um robotĂĄxi Waymo One, chamado apenas 10 minutos antes por um aplicativo. A oferta desse serviço ao pĂșblico vem se expandindo lentamente pelos Estados Unidos e Ă© um dos vĂĄrios progressos que indicam que a tecnologia dos veĂculos autĂŽnomos estĂĄ realmente se tornando parte das nossas vidas.
A promessa da tecnologia de veĂculos sem motorista vem seduzindo as pessoas hĂĄ muito tempo. Ela pode transformar nossa experiĂȘncia de transporte e longas viagens, afastar as pessoas de ambientes de trabalho de alto risco e agilizar as indĂșstrias. Essa tecnologia Ă© tambĂ©m fundamental para ajudar-nos a construir as cidades do futuro, redefinindo a nossa dependĂȘncia e relação com os carros, reduzindo as emissĂ”es de carbono e construindo o caminho para formas de viver mais sustentĂĄveis.
E poderĂĄ ainda, em teoria, tornar nossas viagens mais seguras. A Organização Mundial da SaĂșde estima que mais de 1,3 milhĂŁo de pessoas morrem todos os anos em acidentes de trĂąnsito. "Queremos estradas mais seguras e redução do nĂșmero de mortes. A automação poderĂĄ um dia nos oferecer isso", afirma Camilla Fowler, chefe de transporte automĂĄtico do LaboratĂłrio de Pesquisa de Transportes (TRL, na sigla em inglĂȘs) do Reino Unido.
Mas, para que a tecnologia de transporte sem motorista seja adotada em larga escala, muitas mudanças ainda são necessårias.
"Os veĂculos sem motorista devem ser uma forma muito calma e serena de ir do ponto A ao ponto B. Mas nem todo motorista humano Ă sua volta comporta-se dessa maneira", afirma David Hynd, cientista-chefe de segurança e pesquisa do TRL. "Ă preciso ser capaz de lidar com motoristas humanos dirigindo em alta velocidade, por exemplo, ou desrespeitando as regras de trĂąnsito."
E este nĂŁo Ă© o Ășnico desafio. Existe a regulamentação, a reformulação dos cĂłdigos de trĂąnsito, a percepção do pĂșblico, a melhoria da infraestrutura das nossas ruas, vilas e cidades e a grande questĂŁo da responsabilidade final pelos acidentes de trĂąnsito. "Toda a indĂșstria de seguros estĂĄ examinando como lidar com essa mudança, em que nĂŁo hĂĄ mais uma pessoa responsĂĄvel encarregada do veĂculo causador do acidente", segundo Richard Jinks, vice-presidente comercial da companhia de software para veĂculos autĂŽnomos Oxbotica, com sede em Oxfordshire, na Inglaterra.
A companhia estĂĄ testando sua tecnologia em carros e veĂculos de entrega de mercadorias em diversos locais no Reino Unido e na Europa continental.
O objetivo dos especialistas Ă© ter veĂculos com direção totalmente autĂŽnoma, seja na indĂșstria, nas redes de transporte mais amplas e nos carros de passeio, que possam ser desenvolvidos e utilizados em qualquer parte, em todo o mundo.
Mas, com todos esses obstĂĄculos a serem transpostos, o que exatamente nos espera para os veĂculos autĂŽnomos nos prĂłximos 10 anos?
Daqui a 2 anos
O maior obstĂĄculo da indĂșstria de tecnologia de carros sem motorista Ă© como fazer com que os carros sejam operados com eficiĂȘncia e segurança em ambientes humanos complexos e imprevisĂveis. Resolver essa parte do quebra-cabeça serĂĄ o foco principal de atenção nos prĂłximos dois anos.
Especialistas estĂŁo estudando essa questĂŁo nas instalaçÔes de teste da Mcity, na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. A primeira pista de testes especĂfica para veĂculos autĂŽnomos do mundo Ă© uma minicidade tĂpica, com 6,5 hectares de infraestrutura de trĂĄfego.
A pista inclui sinais de trĂąnsito, passagens subterrĂąneas, fachadas de edifĂcios, arborização pĂșblica, fachadas de residĂȘncias e garagens para testar serviços de entrega de mercadorias e tĂĄxi e diferentes terrenos como ruas, faixas de pedestres, trilhos de trem e marcaçÔes de rodovias onde os veĂculos precisam transitar.
à nessa pista que os especialistas testam cenårios que até os motoristas mais experientes podem ter dificuldades de enfrentar, desde crianças brincando na rua até dois carros tentando entrar em um cruzamento ao mesmo tempo.
"O teste da tecnologia de carros sem motorista depende de centenas de variåveis diferentes em cada situação", explica Necmiye Ozay, professora de engenharia elétrica e da computação da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. A solução proposta por ela é a criação de um grupo de planejadores diversos.
"Estamos tentando trazer pessoas de diferentes partes da universidade - não apenas engenheiros, mas também de outras disciplinas, como psicologia. (São) pessoas mais relacionadas com a interação entre seres humanos e måquinas, porque existem muitas questÔes relativas à segurança que estamos tentando solucionar", afirma Ozay.
Na instalação de testes, Ozay e sua equipe podem testar diferentes cenĂĄrios de trĂąnsito e explorar como os veĂculos autĂŽnomos comunicam-se entre si, mantendo os dados pessoais e dos veĂculos protegidos contra hackers.
Os tĂĄxis sem motorista jĂĄ estĂŁo nas ruas de Phoenix, no Arizona, devido a um prolongado processo de testes como o que estĂĄ sendo conduzido pela equipe de Ozay. Atualmente, o serviço sĂł Ă© disponĂvel como teste para o pĂșblico em pequenas ĂĄreas definidas, mas existem planos para liberar os tĂĄxis autĂŽnomos em escala maior e mais ampla nos prĂłximos dois anos.
A companhia norte-americana Waymo, por exemplo, estå expandindo seus testes para novas cidades. Realisticamente falando, San Francisco e Nova York, nos Estados Unidos, poderão ver robotåxis em operação até 2023. Mas uma de suas principais executivas, Tekedra Mawakana, é cautelosa ao afirmar quais poderiam ser as próximas expansÔes do seu serviço e em quais locais, porque "a segurança exige tempo".
A start-up AutoX, financiada pela Alibaba, lançou seu robotĂĄxi totalmente autĂŽnomo em Xangai, na China, em 2020. AtĂ© 2023, Ă© provĂĄvel que o seu serviço esteja disponĂvel em outras cidades chinesas e tambĂ©m na CalifĂłrnia, nos Estados Unidos.
Grande parte da tecnologia de veĂculos sem motorista jĂĄ em uso encontra-se em ambientes industriais, como minas, armazĂ©ns e portos, mas David Hynd acredita que, nos prĂłximos dois anos, podemos esperar que ela se estenda atĂ© "o Ășltimo quilĂŽmetro da entrega" - ou seja, a parte final da viagem para produtos e serviços, o ponto onde eles sĂŁo fornecidos para o consumidor: veĂculos de carga pesada autĂŽnomos nas estradas, por exemplo, ou atĂ© veĂculos de entrega de alimentos e outros produtos.
Daqui a 5 anos
Embora a Apple afirme que pretende lançar carros elĂ©tricos totalmente autĂŽnomos daqui a quatro anos, os especialistas da indĂșstria sĂŁo mais cautelosos sobre o que nos reserva o futuro prĂłximo.
Segundo Camilla Fowler, as discussĂ”es sobre a regulamentação e o novo papel das companhias de seguro nesse setor de transporte precisam amadurecer. "A abordagem precisa ser recorrente, seja começando com ĂŽnibus e cĂĄpsulas ou com veĂculos para todo terreno, quando houver benefĂcio nesse uso, e vocĂȘ terĂĄ um ambiente potencialmente mais controlado, [sabendo] o que funciona com o quĂȘ", afirma ela. "Depois podemos ampliar [a abordagem] e englobar outros tipos de veĂculos e mais casos de uso."
Um novo setor onde podemos esperar o desenvolvimento da tecnologia de carros autĂŽnomos sĂŁo os ambientes de alto risco, que vĂŁo desde instalaçÔes nucleares atĂ© ambientes militares, para reduzir os riscos para a vida humana, segundo Fowler. Uma mina do grupo Rio Tinto no oeste da AustrĂĄlia, por exemplo, estĂĄ operando atualmente a maior frota de veĂculos autĂŽnomos do mundo. Os caminhĂ”es sĂŁo controlados por um sistema centralizado a quilĂŽmetros de distĂąncia, na cidade australiana de Perth.
"Se vocĂȘ puder retirar as pessoas daquele local, colocar veĂculos autĂŽnomos operando de forma totalmente automatizada e tiver alguĂ©m para controlar Ă distĂąncia os veĂculos naquele ambiente de alto risco, isso sĂł pode ser algo bom", afirma Fowler.
Nos prĂłximos cinco anos, a maior parte da tecnologia de veĂculos autĂŽnomos permanecerĂĄ longe do pĂșblico em geral. A empresa britĂąnica TRL estĂĄ pesquisando o potencial de veĂculos de carga pesada sem motorista nas estradas, incluindo a ideia de pelotĂ”es de veĂculos.
Os pelotĂ”es sĂŁo um grupo de veĂculos semiautĂŽnomos que dirigem a pouca distĂąncia entre si, impedindo outros veĂculos de separĂĄ-los. Trafegando prĂłximos entre si, os veĂculos do pelotĂŁo podem reduzir o consumo de combustĂvel, aproveitando a esteira do caminhĂŁo Ă frente, e tambĂ©m ajudam a reduzir os congestionamentos, jĂĄ que os caminhĂ”es juntos ocupam menos espaço na rodovia.
A empresa Plus, a primeira fabricante de caminhÔes autÎnomos, também estå explorando esse campo. Seus experimentos europeus iniciaram operação em 2021, após um teste bem-sucedido na rodovia Wufengshan, no centro econÎmico do Delta do Rio Yangtze, na China.
Longe dessas indĂșstrias, Necmiye Ozay prevĂȘ ainda que "poderemos ver veĂculos robĂłticos mais leves, que poderĂŁo usar as calçadas e ciclovias com velocidade limitada, para entrega de itens como alimentos".
Com relação ao transporte pĂșblico, a Oxbotica tambĂ©m estĂĄ trabalhando com a empresa especialista de sistemas de veĂculos ZF, sediada na Alemanha, ao longo dos prĂłximos cinco anos para tornar o ĂŽnibus autĂŽnomo um padrĂŁo real para as cidades europeias, operando nas ruas e aeroportos, de forma muito similar aos ĂŽnibus atuais.
"Os veĂculos sobre trilhos que vemos atualmente em aeroportos nĂŁo precisarĂŁo mais desses trilhos daqui a cinco anos. Isso significa que os ĂŽnibus autĂŽnomos poderĂŁo transportar vocĂȘ do estacionamento atĂ© o aeroporto, depois direto para o seu portĂŁo de embarque e atĂ© o aviĂŁo", explica Richard Jinks.
Para os usuĂĄrios, isso poderĂĄ resultar em sistemas de transporte mais confiĂĄveis e econĂŽmicos. "A interligação dos sistemas de transporte autĂŽnomos para formar um sistema de transporte pĂșblico que seja tĂŁo eficiente quanto entrar no seu carro e dirigi-lo pode ser a solução para os congestionamentos no futuro", acrescenta Jinks.
Daqui a 7 anos
Todos os especialistas concordam que os prĂłximos sete anos dependerĂŁo dos sucessos e fracassos dos desdobramentos iniciais e como evoluirĂŁo a segurança e a confiança do pĂșblico. Mas a maioria espera que novos projetos nas cidades permitam maior adoção dessa tecnologia e nos ajudem a adotar essas formas de vida modernas e mais eficientes.
"Se vocĂȘ mora em uma ĂĄrea urbana densa, espera-se que vocĂȘ possa confiar na mobilidade enquanto serviço. VocĂȘ poderĂĄ chamar o carro, ele chegarĂĄ em dois minutos e vocĂȘ faz a sua viagem. VocĂȘ nĂŁo precisaria mais ter aquelas enormes filas de carros estacionados na rua, o que deixa faixas mais livres para os veĂculos automĂĄticos", afirma Hynd.
Sem carros estacionados ao longo da rua, a faixa de circulação dos veĂculos poderĂĄ ser mais estreita, o que abre espaço para mais ĂĄreas verdes. Mas, enquanto os defensores dos veĂculos autĂŽnomos insistem que eles tornarĂŁo nossas ruas mais seguras, alguns acreditam que pedestres e veĂculos autĂŽnomos simplesmente nĂŁo podem ser misturados. Isso poderĂĄ fazer com que nossas cidades e a forma como fazemos uso delas recisem ser reprojetadas.
Parte desse pensamento jĂĄ estĂĄ se tornando realidade. Em 2018, a empresa sueca IKEA desenvolveu um conceito de veĂculo autĂŽnomo que pode tambĂ©m servir de sala de reuniĂŁo, hotel e armazĂ©m. O impacto desse tipo de inovação Ă© a redução da necessidade de viajar, em primeiro lugar, oferecendo ambientes intercambiĂĄveis como e quando precisarmos. Nossas necessidades poderĂŁo ser atendidas onde quer que nos encontremos.
Ozay espera que muitas outras opçÔes autĂŽnomas sejam oferecidas para os clientes nesse perĂodo, inclusive no campo dos carros de passeio. "Minha esperança Ă© que os carros tenham inteligĂȘncia suficiente para dizer 'sim' ou 'nĂŁo', quando questionados se podem levar um passageiro do ponto A ao ponto B com confiabilidade e segurança em um dado dia, analisando antecipadamente as condiçÔes do tempo e do trĂĄfego", explica ela.
Daqui a 10 anos
Apesar de todos os desdobramentos e inovaçÔes que a prĂłxima dĂ©cada provavelmente irĂĄ trazer, alguns especialistas acham que ainda poderemos estar longe do total desenvolvimento dos veĂculos autĂŽnomos.
Segundo Ozay, "a direção totalmente automĂĄtica - em todas as condiçÔes possĂveis, em que vocĂȘ pode colocar as crianças sozinhas no carro e enviĂĄ-las para qualquer lugar sem preocupação - Ă© algo que eu nĂŁo espero chegar a ver" ao menos atĂ© 2031.
David Hynd concorda que a automação total nesse prazo é improvåvel. "Como ocorre com qualquer outra infraestrutura de transporte, com tudo o que a sociedade utiliza, muitas outras coisas precisam acontecer para isso chegar. E não falo só de regulamentação", afirma ele.
A segurança serĂĄ um obstĂĄculo importante, especialmente em paĂses mais lentos para adotar mudanças devido aos enormes custos envolvidos. A infraestrutura tambĂ©m definirĂĄ a rapidez e a eficiĂȘncia de desdobramento dessa tecnologia - e a percepção e a disposição do pĂșblico de utilizar veĂculos autĂŽnomos precisarĂŁo aumentar, segundo Hynd.
Mas nem todos concordam com isso. Richard Jinks acredita que veremos veĂculos autĂŽnomos nas estradas ao lado dos veĂculos dirigidos por seres humanos daqui a 10 anos. Nesse sentido, vocĂȘ poderĂĄ entrar em um ĂŽnibus autĂŽnomo no aeroporto e dali sair para um tĂĄxi sem motorista que irĂĄ levĂĄ-lo atĂ© o seu destino final.
Ser dono de um carro autĂŽnomo nos prĂłximos 10 anos Ă© menos provĂĄvel - segundo Hynd, ele ainda serĂĄ caro demais para a maioria das pessoas. Mas a promessa da tecnologia de veĂculos sem motorista estĂĄ por libertar-nos da nossa dependĂȘncia dos carros, o que pode transformar o uso do nosso tempo e o nosso ambiente.
Para Jinks, "estamos tentando resolver um dos maiores problemas de engenharia do Ășltimo sĂ©culo. A evolução se darĂĄ ao longo do tempo, com o aumento da complexidade dos ambientes e recursos, em todos os lugares. Ă um continuum, pense sobre esse continuum... ele continuarĂĄ melhorando com o passar do tempo. Essas coisas aprenderĂŁo continuamente umas com as outras."
Da mesma forma que as estaçÔes de carregamento de eletricidade começam a entrar lentamente nos estacionamentos, nas ruas laterais e nos postos de gasolina, os veĂculos autĂŽnomos tambĂ©m entrarĂŁo algum dia na nossa vida diĂĄria. Daqui a alguns anos, poderemos atĂ© ficar imaginando como conseguĂamos viver sem eles.
Leia a Ăntegra desta reportagem (em inglĂȘs) no site BBC Future.
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