Mercado fechado

O que o bitcoin conserta?

Texto escrito por: @LetaHOLD

Nestes tempos de bear market Ă© sempre bom relembrar fundamentos bĂĄsicos da tese do bitcoin. Por isso, nesse texto vamos explorar a função social do bitcoin.
Um dos lemas mais comumente usados na comunidade dos bitcoinheiros Ă© o “
fix the money, fix the world”, algo como “conserte o dinheiro, conserte o mundo”.

Mas para consertar algo, o pressuposto bĂĄsico Ă© reconhecer que este algo estĂĄ quebrado em primeiro lugar. Ou seja, quem nĂŁo consegue diagnosticar o que existe de errado no mundo atual, nĂŁo consegue visualizar o porquĂȘ esse mundo precisa de algo que o conserte.

O bitcoin e a neosaldina

O bitcoin Ă© uma solução, entĂŁo para entendĂȘ-lo Ă© necessĂĄrio compreender qual o problema que ele soluciona. Um exemplo que sempre utilizo Ă© o da neosaldina e a enxaqueca.

Para quem não estå com enxaqueca, uma neosaldina não possui valor algum e, provavelmente, seria recusada mesmo se oferecida de graça.

Em compensação, para uma pessoa que estĂĄ com uma crise de enxaqueca, essa mesma neosaldina vale muito. Ou seja, para quem conhece o problema e estĂĄ sentindo na pele, a solução faz muito mais sentido do que para quem nĂŁo tem consciĂȘncia do problema.

Remédio
Remédio

E qual o problema que o bitcoin conserta? O objetivo deste texto é responder melhor essa pergunta, mas basicamente: o bitcoin representa a separação entre o dinheiro e o estado.

Separação entre o dinheiro e o estado

Todos estudamos a importĂąncia da separação entre a Igreja e o estado em nossas aulas de histĂłria. De acordo com o WikipĂ©dia, “a separação igreja-estado Ă© uma doutrina polĂ­tica e legal que estabelece que o governo e as instituiçÔes religiosas devem ser mantidos separados e independentes uns dos outros.

A expressão se refere mais frequentemente à combinação de dois princípios: secularismo do governo e liberdade religiosa”.

Em poucas palavras, foi a separação entre a igreja e o estado que permitiu a humanidade criar os estados modernos e a sociedade como nós a conhecemos hoje. Foi a separação entre a igreja e o estado que permitiu a construção do mundo em que vivemos.

Antes, a religiĂŁo era controlada por poucos e utilizada como ferramenta de poder e controle sobre os indivĂ­duos, e pessoas podiam ser punidas por nĂŁo concordar com estes dogmas e possuir uma visĂŁo de mundo diferente, estes denominados hereges.

Um exemplo de punição utilizada por religiosos e pela igreja para defender seus dogmas.
Um exemplo de punição utilizada por religiosos e pela igreja para defender seus dogmas.

Nosso mundo foi construĂ­do graças Ă  negação dessa posição de autoridade da religiĂŁo. Foi a possibilidade de geração de um tipo de conhecimento baseado em evidĂȘncias e lĂłgica (o chamado mĂ©todo cientĂ­fico, fruto da Revolução CientĂ­fica) e nĂŁo em dogmas impostos por doutrinas religiosas que fez a humanidade avançar.

VocĂȘ consegue imaginar viver em um mundo sem antibiĂłticos, onde qualquer infecção pode ser fatal? Sem geladeira, onde a conservação de alimentos nĂŁo Ă© possĂ­vel com a mesma eficiĂȘncia?

AtĂ© existem outras formas de preservação de alimento como a desidratação, a fermentação e o enlatamento, que permitem a conservação de alimentos sem utilização de eletricidade. VocĂȘ consegue se imaginar sem motores a combustĂŁo, peça fundamental para a Revolução Industrial e sem substituto atĂ© os dias de hoje? Qualquer um desses avanços seria considerado bruxaria para um indivĂ­duo da Idade MĂ©dia. E sem essa separação, nada disso teria sido possĂ­vel.

Da mesma forma, vivemos em um mundo que antecede a separação entre o dinheiro e o estado. Para entender o tamanho das implicaçÔes disso, o primeiro passo Ă© se perguntar: o que Ă© dinheiro? 

Este Ă© um tema profundamente explorado pelos bitcoinheiros, mas aqui vamos nos ater Ă  definição simples de que o dinheiro Ă© a tecnologia inventada pela humanidade que permite a transferĂȘncia de trabalho e energia atravĂ©s do tempo.

O dinheiro na mĂŁo do estado

Mas, quais são os problemas do dinheiro estar na mão do estado? Ou, em outras palavras, qual o problema da nossa tecnologia de comunicação de valor entre indivíduos poder ser controlada por uma entidade centralizada e com interesses próprios?

VocĂȘ deve se lembrar de quando era criança e seus pais te alertavam que “o dinheiro nĂŁo cai do cĂ©u”, ou ainda que “dinheiro nĂŁo nasce em ĂĄrvore”. O que eles queriam dizer Ă© que o dinheiro possui lastro na realidade, por isso ele tem valor.

Hoje em dia, dinheiro nasce sim em ĂĄrvore.
Hoje em dia, dinheiro nasce sim em ĂĄrvore.

Mas os seus pais estavam enganados. Atualmente, pode-se dizer que o dinheiro nĂŁo possui nenhum lastro real e efetivamente nasce em ĂĄrvore.

Ou seja, a tecnologia de comunicação de valor entre indivíduos estå sendo manipulada em benefício de uma pequena elite que possui acesso às impressoras de dinheiro. Atualmente, todos os governos do mundo imprimem seu próprio dinheiro ao bel prazer, sem respeitar qualquer tipo de reservas em bens físicos.

Existem pessoas que acreditam que o governo Ă© belo e moral e que, diferentemente do que acontece para indivĂ­duos, o governo imprimir dinheiro nĂŁo acarreta em problemas. A histĂłria prova que este ponto de vista estĂĄ errado.

Um site que todo bitcoinheiro deve pesquisar e que comprova isso Ă© o wtfhappenedin1971.com (algo como “que porra aconteceu em 1971” .com), que compila diversos grĂĄficos que ilustram o tamanho da mudança que o mundo passou a partir de  1971, quando o dinheiro passou a nascer em ĂĄrvore.

Este Ă© o ano em que o presidente Richard Nixon rompe o lastro ouro/dĂłlar, e com isso desassocia o mundo real do dĂłlar. Isso fez com que a moeda americana virasse uma moeda fiat, ou seja, uma moeda que sĂł tem valor por decreto e nĂŁo pelo seu lastro.

Os trĂȘs grĂĄficos abaixo sĂŁo do site wtfhappenedin1971.com e ilustram bem o tamanho das mudanças associadas Ă  Era Fiat:

A produtividade real aumentou significativamente mais que a remuneração, que permaneceu praticamente eståvel desde a década de 1970.
A produtividade real aumentou significativamente mais que a remuneração, que permaneceu praticamente eståvel desde a década de 1970.
A inflação passou a ser um fenĂŽmeno mais comum e recorrente, o que Ă© comprovado pela ocorrĂȘncia do termo “ajustado pela inflação” no Google Books.
A inflação passou a ser um fenĂŽmeno mais comum e recorrente, o que Ă© comprovado pela ocorrĂȘncia do termo “ajustado pela inflação” no Google Books.
O processo de colapso de moedas nacionais se tornou algo comum apĂłs 1971.
O processo de colapso de moedas nacionais se tornou algo comum apĂłs 1971.

Os problemas do dinheiro na mĂŁo do estado

A seguir, sĂŁo apresentados, de forma sucinta, alguns dos principais problemas associados ao dinheiro no mundo atual.

Inflação planejada

Atualmente, os bancos centrais dos países do mundo possuem metas de inflação. Em outras palavras, eles miram e tentam fazer com que exista inflação.

Os economistas keynesianos dizem que isso é positivo pois estimula o consumo e o crescimento. Para ver como a nossa comunidade de plebs bitcoinheiros enxerga essa inflação planejada, lancei a pergunta da imagem abaixo no Twitter.

Na dĂșvida, pergunte aos plebs.
Na dĂșvida, pergunte aos plebs.

Essa inflação planejada vem ocorrendo hĂĄ dĂ©cadas, uma vez que ela Ă© uma das Ășnicas maneira que os estados possuem para gastar mais do que arrecadam (a outra Ă© o endividamento estatal via tĂ­tulos de dĂ­vida), o que eles jĂĄ fazem hĂĄ dĂ©cadas. Basicamente, eles pegam dinheiro emprestado do futuro e das prĂłximas geraçÔes para usar esse dinheiro no presente.

Essa Ă© a Ășnica razĂŁo que justifica o sistema econĂŽmico keynesiano ainda estar em pĂ©: ele rouba das prĂłximas geraçÔes. Uma verdadeira pirĂąmide em que as geraçÔes passadas acumularam um padrĂŁo de vida elevado e em troca sabotaram os millennials e a geração Z.

Os economistas keynesianos tĂȘm medo de deflação, pois na visĂŁo deles uma hipotĂ©tica deflação estimula o poupador a reter o seu dinheiro, o que desaceleraria o consumo e geraria uma espiral recessiva.

Para os governos, um poupador é alguém que estå desacelerando a economia ao reter seu capital, o que é perigoso, pois uma desaceleração tornaria as suas dívidas mais impagåveis do que a atual realidade.

Devido a essa visão capenga sobre inflação e deflação e o incentivo à emissão de moeda para pagar mais programas sociais, que são usados para comprar apoio político, atualmente os governos possuem dívidas impagåveis e, no ponto de vista deles, quanto maior for a inflação, melhor.

Isso porque a inflação torna essa dívida mais viåvel, visto que o poder de compra do dinheiro diminui devido ao aumento da base monetåria.

Desse ponto de vista, as metas de inflação simplesmente auxiliam o governo a não perder o controle dessa inflação proposital. Perder o controle dela significa entrar em uma hiperinflação, o que gera inquietação na sociedade e possivelmente revoltas e saques.

A hiperinflação, a partir de um certo ponto, causa um fenĂŽmeno de repĂșdio Ă  moeda nacional (onde as pessoas começam a se recusar a transacionar naquela moeda), culminando na perda de função de unidade de conta (como pode ser observado na Venezuela e Argentina). EntĂŁo, no ponto de vista dos governos, o ideal Ă© manter a inflação o mais alta possĂ­vel sem que haja convulsĂŁo popular.

Ou seja, os poupadores e os governos estĂŁo inerentemente em campos opostos: os poupadores sĂŁo beneficiĂĄrios da deflação, pois isso aumenta o seu poder de compra no futuro, jĂĄ os governos se beneficiam da inflação, pois ela faz com que o poder de compra do dinheiro no futuro seja menor, tornando suas dĂ­vidas viĂĄveis. 

Em outras palavras, os incentivos do governo e dos poupadores sĂŁo diametralmente opostos.

Mas o que isso significa? De uma maneira bem simplificada, as economias de todos os poupadores perdem seu poder de compra. Ou seja, quando o governo estabelece metas de inflação, na realidade ele estå estabelecendo metas de roubo do tempo dos poupadores.

Em poucas palavras: o governo estĂĄ roubando o nosso tempo de vida.

Isso porque, quando um indivĂ­duo se dedica a trabalhar e a economizar dinheiro, ele estĂĄ convertendo o seu trabalho em uma reserva de valor para o longo prazo chamada dinheiro.

Quando o governo ativamente possui metas para diluir o poder de compra dessa reserva de valor, efetivamente ele estĂĄ roubando o tempo que este indivĂ­duo se dedicou para acumulĂĄ-la. EntĂŁo, quando vocĂȘ ler sobre “meta de inflação”, saiba que isso quer dizer “roubo do poder de compra do fruto do seu trabalho”.

Um exemplo de como os governos fazem para enganar a população. A inflação “ajuda a economia” e não “a inflação dilui o poder de compra dos indivíduos”.
Um exemplo de como os governos fazem para enganar a população. A inflação “ajuda a economia” e não “a inflação dilui o poder de compra dos indivíduos”.

O pleb bitcoinheiro Diego Kolling, no Twitter, fez uma boa sĂ­ntese dessa questĂŁo de inflação planejada ser o oposto do que ocorreria em um livre mercado, onde a tendĂȘncia natural seria a deflação devido ao aumento de produtividade natural que o livre mercado gera:

Alta preferĂȘncia temporal

Uma hipĂłtese bastante conhecida entre quem estudou economia austrĂ­aca Ă© que a preferĂȘncia temporal das pessoas, ou seja, a capacidade delas de se planejarem para o longo prazo, Ă© diretamente afetada pela qualidade do dinheiro que elas tĂȘm acesso.

Por exemplo: o hĂĄbito do brasileiro de fazer a “compra do mĂȘs” tem origem no nosso perĂ­odo de hiperinflação no final dos anos 1980 e inĂ­cio dos anos 1990.

Isso ocorre pois em períodos inflacionários o poder de compra do dinheiro se torna “um cubo de gelo derretendo”, nas palavras do Michael Saylor. Ou seja, os indivíduos são incentivados a trazerem o consumo do futuro para o presente.

Um dinheiro que Ă© programado para se desvalorizar torna as pessoas mais imediatistas, uma vez que torna mais difĂ­cil o planejamento de longo prazo. Isso estimula as pessoas a consumirem o quanto antes, visto que no futuro esse dinheiro em suas mĂŁos terĂĄ um poder de compra menor.

Ou seja, um dinheiro que se desvaloriza estimula as pessoas a gastarem no presente ao invés de poupar para o futuro.

Essa questão de como a qualidade do dinheiro afeta os padrÔes de pensamento das pessoas serå aprofundada em um capítulo mais adiante, onde é feita a comparação do perfil de personalidade dos bitcoinheiros do exterior com os bitcoinheiros brasileiros onde observamos que, em média, são mais imediatistas que os bitcoinheiros gringos.

Os efeitos deletĂ©rios da mudança de preferĂȘncia temporal em uma sociedade com metas de inflação afetam todas as tomadas de decisĂŁo dos seus indivĂ­duos.

O que quero dizer com isso? Que em uma sociedade que incentiva a gratificação instantùnea e não escolhas que foquem o longo prazo, todas as escolhas serão baseadas nessa lógica.

EntĂŁo, as escolhas alimentares, por exemplo, nĂŁo levarĂŁo em conta os efeitos deletĂ©rios do açĂșcar e dos Ăłleos vegetais na saĂșde, mas no prazer imediato que uma batata frita e um refrigerante podem proporcionar.

Amo muito tudo isso?
Amo muito tudo isso?

Em outras palavras, estamos sacrificando o longo prazo pelo curto prazo.

Assim como os hĂĄbitos alimentares, podemos inferir que os hĂĄbitos de consumo tambĂ©m serĂŁo extremamente imediatistas. NĂŁo Ă© coincidĂȘncia que na sociedade atual existe o conceito de “fast fashion”, onde o foco sĂŁo produtos fabricados para consumidos e descartados rapidamente.

Sociedade fiat

Essa mudança nos nossos padrĂ”es de consumo ocorre em todos os ramos da atividade humana. 

Uma consequĂȘncia direta do dinheiro ter cada vez menos poder de compra Ă© que precisamos trabalhar cada vez mais para atingir os mesmos objetivos. Por isso, hoje em dia Ă© muito mais difĂ­cil para um millennial sonhar em comprar sua prĂłpria casa do que era no passado.

E isso nĂŁo Ă© uma teoria da conspiração ou um discurso de uma geração acomodada, Ă© fato observado nos dados. Ou, como o Michael Saylor diz, citando Hayek: o caminho da servidĂŁo consiste em vocĂȘ trabalhar cada vez mais para ganhar um dinheiro que vale cada vez menos.

Riqueza intergeracional
Riqueza intergeracional

Com cada vez menos tempo para qualquer coisa que não seja trabalho, uma vez que os frutos deste trabalho são cada vez menores e sendo constantemente erodidos propositalmente, a alimentação piora e comemos mais comida congelada e pedimos mais delivery ao invés de cozinhar.

Com menos tempo, nosso prazer passa a ser assistir uma série no Netflix ou comprar alguma tralha na Amazon ou no Shopee, e não passear no parque ou fazer uma atividade física gratuita por duas horas no parque. Numa sociedade com cada vez menos tempo, o lazer precisa ser consumido em alta intensidade.

Isso Ă© a essĂȘncia da sociedade fiat atual, um mundo em que ninguĂ©m tem tempo para si. Mas poucos percebem a razĂŁo desta falta de tempo: ele estĂĄ sendo roubado pelos governos, quando estes desvalorizam o poder de compra do dinheiro.

A sociedade fiat também pode ser sintetizada nas palavras do personagem Tyler Durden de Clube da Luta:

“Trabalhamos em empregos que odiamos, para comprar porcarias que não precisamos, com dinheiro que não temos, para impressionar pessoas que não gostamos”.

Essa necessidade de impressionar o outro vem de uma falta de tempo para buscar o autoconhecimento.

Na sociedade fiat, a falta de tempo e a quantidade de ruĂ­do gera indivĂ­duos nĂŁo pensantes, conhecidos como NPCs (non-player character, ou personagem nĂŁo jogĂĄvel) na comunidade bitcoinheira do Twitter. Quem nĂŁo tem tempo para respirar fundo e pensar, nĂŁo tem tempo para fugir da sociedade fiat e buscar entender as coisas por conta prĂłpria.

Dois memes sobre os NPCs que circulam na internet com a frase “eu apoio o ponto de vista atual”, fazendo referĂȘncia Ă s pessoas que tem a opiniĂŁo facilmente moldĂĄvel pela mĂ­dia e redes sociais. Poderia ser “eu apoio a causa atual tambĂ©m”.
Dois memes sobre os NPCs que circulam na internet com a frase “eu apoio o ponto de vista atual”, fazendo referĂȘncia Ă s pessoas que tem a opiniĂŁo facilmente moldĂĄvel pela mĂ­dia e redes sociais. Poderia ser “eu apoio a causa atual tambĂ©m”.

Dinheiro censurĂĄvel

O dinheiro fiat é um dinheiro censuråvel por definição, uma vez que o seu controle é dos governos, que possuem o poder de definir se determinada moeda fiduciåria ainda é vålida ou não. No Brasil, todo o dinheiro poupado pela população jå foi confiscado.

Isso aconteceu em março de 1990, quando o então presidente Fernando Collor decretou o confisco das poupanças como medida para combater a inflação galopante que afetava o país. Nessa época, a poupança era a principal forma de investimento da grande maioria dos brasileiros que tinham algum dinheiro guardado, então, na pråtica, o estado se apropriou do fruto do trabalho da maioria dos brasileiros.

Collor bloqueia dinheiro
Collor bloqueia dinheiro

Confiscos de bens monetĂĄrios sĂŁo recorrentes na histĂłria, entĂŁo, para nĂŁo me estender muito, vou citar sĂł um exemplo clĂĄssico e outro contemporĂąneo de como, quando necessĂĄrio, mesmo os governos dos paĂ­ses ditos “mais civilizados” tambĂ©m nĂŁo respeitam a propriedade privada dos seus cidadĂŁos: 

Estados Unidos, 1933 – todo o ouro dos cidadĂŁos foi confiscado em 1933 em consequĂȘncia da crise de 1929. Isso aconteceu quando a Ordem Executiva 6102 Ă© assinada em 5 de abril de 1933 pelo presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt, “proibindo o acĂșmulo de moedas de ouro, barras de ouro e certificados de ouro dentro dos Estados Unidos continentais”.

Canadá, 2022 – O mesmo aconteceu recentemente nos protestos dos caminhoneiros canadenses, onde o governo do Canadá decretou o congelamento dos fundos do financiamento coletivo dos protestos.

Além disso, indivíduos também foram perseguidos e tiveram suas contas congeladas, efetivamente perdendo acesso ao seu próprio dinheiro do dia para a noite por ter opiniÔes diferentes das que os políticos no poder possuem, graças a decisão de algum burocrata e alguns apertos de botão.

Exemplos nĂŁo faltam e o fato Ă© que enquanto o dinheiro continuar censurĂĄvel, indivĂ­duos ainda sofrerĂŁo as consequĂȘncias das barbeiragens econĂŽmicas dos estados e terĂŁo o seu dinheiro confiscado por estes mesmos estados em tentativas de auto salvação.

Mesmo o ouro é facilmente identificåvel e por conta disso o seu transporte é de alto risco. Fugir de uma situação de crise ou de um regime tirùnico levando ouro simplesmente não é uma opção plausível.

Não é viåvel esconder o patrimÎnio familiar acumulado numa maleta ou em outros lugares ao tentar cruzar as fronteiras e fugir dessas situaçÔes.

Nos dias de hoje, o dinheiro fiat estĂĄ, em sua maioria, sob controle dos estados e essa tendĂȘncia sĂł tende a piorar, uma vez que a digitalização do mundo Ă© um processo que segue e seguirĂĄ ocorrendo.

Conforme formos utilizando mais o dinheiro digital e menos as notas, serĂĄ cada vez mais fĂĄcil para o governo controlar a totalidade das moedas fiduciĂĄrias. Hoje, o acesso ao dinheiro fiduciĂĄrio estĂĄ sujeito ao cancelamento com alguns simples toques de botĂŁo e por alguma decisĂŁo monocrĂĄtica judicial. 

O caso das ex-colĂłnias africanas

O fato do dinheiro ser controlado não afeta somente a população local de determinado país. Atualmente, ainda existe colonialismo, na forma de colonialismo monetårio, ocorrendo no mundo.

Um exemplo Ă© o caso da França e a utilização do Franco CFA (“Community For África”, ou “comunidade para a África” em portuguĂȘs) como forma de controle e poder sob um vasto territĂłrio africano.

Cerca de metade da população da RepĂșblica Centro-Africana precisa de ajuda humanitĂĄria.
Cerca de metade da população da RepĂșblica Centro-Africana precisa de ajuda humanitĂĄria.

Atualmente, 16 ex-colĂŽnias francesas na África possuem como moeda o Franco CFA. Somadas, essas naçÔes possuem uma população de cerca de 185 milhĂ”es de pessoas e ocupam uma ĂĄrea de cerca de 80% do tamanho da Índia.

SĂŁo elas: Senegal, Mali, Costa do Marfim, GuinĂ©-Bissau, Togo, Benim, Burquina Fasso, NĂ­ger, CamarĂ”es, Chade, GabĂŁo, GuinĂ© Equatorial, RepĂșblica do Congo, RepĂșblica Centro-Africana e Comores. Vale ressaltar que dentre estas ex-colĂŽnias, dez estĂŁo entre os paĂ­ses mais pobres da África.

O modelo de controle via dominação monetåria foi inventado pelos nazistas, quando eles assumiram o controle das colÎnias francesas durante a segunda guerra mundial. Ao final da guerra, a França decidiu manter esse modelo, uma vez que ele era efetivo na dominação das colÎnias.

Atualmente, 100% do comĂ©rcio internacional destas naçÔes passa pelo tesouro da França. A França tambĂ©m faz a custĂłdia de 90% das reservas de ouro e 50% das reservas internacionais desses paĂ­ses. E como “as reservas” de um paĂ­s nĂŁo significa nada mais que o dinheiro do povo desse paĂ­s, isso significa que a poupança de cerca de 185 milhĂ”es de africanos Ă© controlada atĂ© hoje pela França. 

A França também possui prioridade de acesso às exportaçÔes desses países, além de receberem preços melhores. Estes países também só podem realizar importaçÔes a partir da conversão do Franco CFA em Euro, aumentando o controle da França e da Europa. E o Franco CFA não pode ser convertido em nenhuma outra moeda do mundo, só no Euro.

Desde a criação do Franco CFA, em 1945, até a adoção do Euro no final da década de 90, a desvalorização foi de 99,5%. Neste período, ocorreram episódios em que o Franco CFA foi desvalorizado artificialmente em 50% da noite para o dia, como em 1994.

A justificativa oficial para essa desvalorização, medida oficial adotada pela França, Ă© que com isso as exportaçÔes se tornariam mais baratas e os paĂ­ses africanos conseguiriam produzir a preços mais competitivos. Um ponto de vista mais cĂ©tico mostra que quem pĂŽde comprar estes produtos a preços mais “competitivos” (baratos) foi a prĂłpria França.

Detalhe: a França pode imprimir o Franco CFA virtualmente de graça, o que significa dizer que eles possuem acesso a tudo que esses paĂ­ses produzem a um custo zero. Esquema que lembra muito a descrição do inĂ­cio de empobrecimento da África graças as miçangas de vidro no texto “Mestres e Escravos do Dinheiro” do Robert Breedlove, processo que facilitou significativamente toda a questĂŁo da escravidĂŁo e do comercio do atlĂąntico nos sĂ©culos seguintes.

Desbancarizados

Apesar de todas as críticas que são dirigidas constantemente aos bancos, os serviços bancårios também apresentam vantagens óbvias, como não ter que esconder dinheiro pela casa e com isso se tornar um ótimo alvo para roubos e furtos ou conectar-se com a rede financeira global e realizar pagamentos em tempo real.

Estamos tão acostumados com os benefícios de um sistema bancårio relativamente sólido, com conta poupança (que às vezes é confiscada) e meios de pagamento como cheques e cartÔes, que não pensamos muito em como seria a nossa vida se esse sistema bancårio não existisse.

Entretanto, isso ocorre somente porque somos privilegiados. Atualmente, existem cerca de 1,7 bilhĂ”es de pessoas no mundo que nĂŁo possuem acesso a esse sistema. Essas pessoas sĂŁo conhecidas como “desbancarizadas”.

No Brasil, mesmo apĂłs a pandemia acelerar a digitalização e a bancarização por conta dos auxĂ­lios, ainda existem 34 milhĂ”es de brasileiros que utilizam muito pouco ou nem possuem conta em bancos. Em levantamento de janeiro de 2021, estimou-se que 10% dos brasileiros nĂŁo possuem conta em banco (16,3 milhĂ”es) e outros 11% (17,7 milhĂ”es) nĂŁo usaram a conta no mĂȘs anterior, totalizando 21% da população.

Pessoas desbancarizadas são marginalizadas da nossa sociedade. Elas não conseguem fazer planos de médio ou longo prazo e são forçadas a pensar sempre no dia a dia. Isso significa, entre outras coisas, que elas não conseguem se aposentar e tendem a continuar em trabalhos mal qualificados e mal remunerados ao longo de toda a sua velhice ou, pelo menos enquanto seu corpo permitir.

Geralmente pessoas sĂŁo desbancarizadas por diversos motivos, como falta de instrução e residĂȘncia em regiĂ”es menos desenvolvidas, nos rincĂ”es que o mundo moderno ainda mal chegou. Um desses diversos motivos Ă© porque essas pessoas nĂŁo sĂŁo economicamente viĂĄveis como clientes para os bancos. Elas representam um risco, nĂŁo uma oportunidade, e nĂŁo vale a pena para os bancos terem elas como clientes.

O exemplo de El Salvador

É natural que existam muito mais pessoas desbancarizadas em paĂ­ses pobres, como Ă© o caso de El Salvador. AtĂ© 2020, cerca de 70% da população (cerca de 4.5 milhĂ”es de pessoas) era desbancarizada. 

Além disso, cerca de 20% do PIB de El Salvador é proveniente de remessas internacionais que salvadorenhos que imigraram para os Estados Unidos e Europa enviam para seus parentes. Essas remessas eram alvo de taxas elevadas cobradas pelos intermediårios (Western Union principalmente), o que significava que a população jå pobre de El Salvador ainda perdia uma parte consideråvel do seu dinheiro.

Levando estes dois fatores em conta, El Salvador se tornou o primeiro paĂ­s do mundo a adotar o bitcoin como moeda legal.  Com isso, os intermediĂĄrios sĂŁo cortados e hoje salvadorenhos que moram no exterior podem mandar dinheiro sem custos para seus familiares. Isso jĂĄ era possĂ­vel antes, mas a adoção como moeda legal incentivou a população a aprender mais sobre o bitcoin.

Mas o principal dessa adoção de El Salvador Ă© a bancarização dos desbancarizados. Em menos de um ano, mais de 60% da população, ou um total superior a 4 milhĂ”es de pessoas jĂĄ sĂŁo usuĂĄrios da carteira estatal Chivo. Ou seja, ainda existem cerca de 2.5 milhĂ”es de pessoas sem acesso a essa carteira. Nesse nĂșmero, alĂ©m dos desbancarizados, tambĂ©m estĂŁo incluĂ­das as crianças. Ou seja, graças Ă  adoção do bitcoin, do dia para a noite, mais de 2 milhĂ”es de pessoas se tornaram bancarizadas e hoje possuem acesso a uma rede monetĂĄria que as permite armazenar sua riqueza ao longo do tempo.

Ou seja


Existem diversos problemas atrelados ao fato do dinheiro estar na mão do estado. Seja o fato dos estados possuírem metas de inflação que efetivamente roubam o tempo de vida e o trabalho acumulado dos seus cidadãos, seja o fato do dinheiro ser censuråvel e poder ser confiscado, além de ser utilizado até hoje como forma de colonialismo. Existem também cerca de 1,7 bilhÔes de pessoas que nem possuem acesso ao sistema bancårio e com isso não conseguem armazenar o fruto do seu trabalho para o longo prazo.

TambĂ©m existem as consequĂȘncias de segunda ordem que essas questĂ”es relacionadas ao dinheiro geram, como uma sociedade fiat baseada numa alta preferĂȘncia temporal onde ninguĂ©m tem tempo e a alimentação e os cuidados com a saĂșde sĂŁo menosprezados em detrimento de gratificaçÔes imediatas. 

O objetivo deste texto era justamente ilustrar quais são os problemas atuais relacionados ao dinheiro, pois sem um diagnóstico claro do problema, a solução não faz sentido. Esse texto propositalmente não lidou com o tema da desigualdade porque esse tema jå foi abordado no texto sobre o Efeito Cantillon.

E, como dito acima, o bitcoin conserta isso.

Fonte: Livecoins

Nosso objetivo Ă© criar um lugar seguro e atraente onde usuĂĄrios possam se conectar uns com os outros baseados em interesses e paixĂ”es. Para melhorar a experiĂȘncia de participantes da comunidade, estamos suspendendo temporariamente os comentĂĄrios de artigos