O que o bitcoin conserta?
Texto escrito por: @LetaHOLD
Nestes tempos de bear market é sempre bom relembrar fundamentos båsicos da tese do bitcoin. Por isso, nesse texto vamos explorar a função social do bitcoin.
Um dos lemas mais comumente usados na comunidade dos bitcoinheiros Ă© o âfix the money, fix the worldâ, algo como âconserte o dinheiro, conserte o mundoâ.
Mas para consertar algo, o pressuposto bĂĄsico Ă© reconhecer que este algo estĂĄ quebrado em primeiro lugar. Ou seja, quem nĂŁo consegue diagnosticar o que existe de errado no mundo atual, nĂŁo consegue visualizar o porquĂȘ esse mundo precisa de algo que o conserte.
O bitcoin e a neosaldina
O bitcoin Ă© uma solução, entĂŁo para entendĂȘ-lo Ă© necessĂĄrio compreender qual o problema que ele soluciona. Um exemplo que sempre utilizo Ă© o da neosaldina e a enxaqueca.
Para quem não estå com enxaqueca, uma neosaldina não possui valor algum e, provavelmente, seria recusada mesmo se oferecida de graça.
Em compensação, para uma pessoa que estĂĄ com uma crise de enxaqueca, essa mesma neosaldina vale muito. Ou seja, para quem conhece o problema e estĂĄ sentindo na pele, a solução faz muito mais sentido do que para quem nĂŁo tem consciĂȘncia do problema.
E qual o problema que o bitcoin conserta? O objetivo deste texto é responder melhor essa pergunta, mas basicamente: o bitcoin representa a separação entre o dinheiro e o estado.
Separação entre o dinheiro e o estado
Todos estudamos a importĂąncia da separação entre a Igreja e o estado em nossas aulas de histĂłria. De acordo com o WikipĂ©dia, âa separação igreja-estado Ă© uma doutrina polĂtica e legal que estabelece que o governo e as instituiçÔes religiosas devem ser mantidos separados e independentes uns dos outros.
A expressĂŁo se refere mais frequentemente Ă combinação de dois princĂpios: secularismo do governo e liberdade religiosaâ.
Em poucas palavras, foi a separação entre a igreja e o estado que permitiu a humanidade criar os estados modernos e a sociedade como nós a conhecemos hoje. Foi a separação entre a igreja e o estado que permitiu a construção do mundo em que vivemos.
Antes, a religiĂŁo era controlada por poucos e utilizada como ferramenta de poder e controle sobre os indivĂduos, e pessoas podiam ser punidas por nĂŁo concordar com estes dogmas e possuir uma visĂŁo de mundo diferente, estes denominados hereges.
Nosso mundo foi construĂdo graças Ă negação dessa posição de autoridade da religiĂŁo. Foi a possibilidade de geração de um tipo de conhecimento baseado em evidĂȘncias e lĂłgica (o chamado mĂ©todo cientĂfico, fruto da Revolução CientĂfica) e nĂŁo em dogmas impostos por doutrinas religiosas que fez a humanidade avançar.
VocĂȘ consegue imaginar viver em um mundo sem antibiĂłticos, onde qualquer infecção pode ser fatal? Sem geladeira, onde a conservação de alimentos nĂŁo Ă© possĂvel com a mesma eficiĂȘncia?
AtĂ© existem outras formas de preservação de alimento como a desidratação, a fermentação e o enlatamento, que permitem a conservação de alimentos sem utilização de eletricidade. VocĂȘ consegue se imaginar sem motores a combustĂŁo, peça fundamental para a Revolução Industrial e sem substituto atĂ© os dias de hoje? Qualquer um desses avanços seria considerado bruxaria para um indivĂduo da Idade MĂ©dia. E sem essa separação, nada disso teria sido possĂvel.
Da mesma forma, vivemos em um mundo que antecede a separação entre o dinheiro e o estado. Para entender o tamanho das implicaçÔes disso, o primeiro passo é se perguntar: o que é dinheiro?
Este Ă© um tema profundamente explorado pelos bitcoinheiros, mas aqui vamos nos ater Ă definição simples de que o dinheiro Ă© a tecnologia inventada pela humanidade que permite a transferĂȘncia de trabalho e energia atravĂ©s do tempo.
O dinheiro na mĂŁo do estado
Mas, quais sĂŁo os problemas do dinheiro estar na mĂŁo do estado? Ou, em outras palavras, qual o problema da nossa tecnologia de comunicação de valor entre indivĂduos poder ser controlada por uma entidade centralizada e com interesses prĂłprios?
VocĂȘ deve se lembrar de quando era criança e seus pais te alertavam que âo dinheiro nĂŁo cai do cĂ©uâ, ou ainda que âdinheiro nĂŁo nasce em ĂĄrvoreâ. O que eles queriam dizer Ă© que o dinheiro possui lastro na realidade, por isso ele tem valor.
Mas os seus pais estavam enganados. Atualmente, pode-se dizer que o dinheiro nĂŁo possui nenhum lastro real e efetivamente nasce em ĂĄrvore.
Ou seja, a tecnologia de comunicação de valor entre indivĂduos estĂĄ sendo manipulada em benefĂcio de uma pequena elite que possui acesso Ă s impressoras de dinheiro. Atualmente, todos os governos do mundo imprimem seu prĂłprio dinheiro ao bel prazer, sem respeitar qualquer tipo de reservas em bens fĂsicos.
Existem pessoas que acreditam que o governo Ă© belo e moral e que, diferentemente do que acontece para indivĂduos, o governo imprimir dinheiro nĂŁo acarreta em problemas. A histĂłria prova que este ponto de vista estĂĄ errado.
Um site que todo bitcoinheiro deve pesquisar e que comprova isso Ă© o wtfhappenedin1971.com (algo como âque porra aconteceu em 1971â .com), que compila diversos grĂĄficos que ilustram o tamanho da mudança que o mundo passou a partir de 1971, quando o dinheiro passou a nascer em ĂĄrvore.
Este Ă© o ano em que o presidente Richard Nixon rompe o lastro ouro/dĂłlar, e com isso desassocia o mundo real do dĂłlar. Isso fez com que a moeda americana virasse uma moeda fiat, ou seja, uma moeda que sĂł tem valor por decreto e nĂŁo pelo seu lastro.
Os trĂȘs grĂĄficos abaixo sĂŁo do site wtfhappenedin1971.com e ilustram bem o tamanho das mudanças associadas Ă Era Fiat:
Os problemas do dinheiro na mĂŁo do estado
A seguir, sĂŁo apresentados, de forma sucinta, alguns dos principais problemas associados ao dinheiro no mundo atual.
Inflação planejada
Atualmente, os bancos centrais dos paĂses do mundo possuem metas de inflação. Em outras palavras, eles miram e tentam fazer com que exista inflação.
Os economistas keynesianos dizem que isso é positivo pois estimula o consumo e o crescimento. Para ver como a nossa comunidade de plebs bitcoinheiros enxerga essa inflação planejada, lancei a pergunta da imagem abaixo no Twitter.
Essa inflação planejada vem ocorrendo hĂĄ dĂ©cadas, uma vez que ela Ă© uma das Ășnicas maneira que os estados possuem para gastar mais do que arrecadam (a outra Ă© o endividamento estatal via tĂtulos de dĂvida), o que eles jĂĄ fazem hĂĄ dĂ©cadas. Basicamente, eles pegam dinheiro emprestado do futuro e das prĂłximas geraçÔes para usar esse dinheiro no presente.
Essa Ă© a Ășnica razĂŁo que justifica o sistema econĂŽmico keynesiano ainda estar em pĂ©: ele rouba das prĂłximas geraçÔes. Uma verdadeira pirĂąmide em que as geraçÔes passadas acumularam um padrĂŁo de vida elevado e em troca sabotaram os millennials e a geração Z.
Os economistas keynesianos tĂȘm medo de deflação, pois na visĂŁo deles uma hipotĂ©tica deflação estimula o poupador a reter o seu dinheiro, o que desaceleraria o consumo e geraria uma espiral recessiva.
Para os governos, um poupador Ă© alguĂ©m que estĂĄ desacelerando a economia ao reter seu capital, o que Ă© perigoso, pois uma desaceleração tornaria as suas dĂvidas mais impagĂĄveis do que a atual realidade.
Devido a essa visĂŁo capenga sobre inflação e deflação e o incentivo Ă emissĂŁo de moeda para pagar mais programas sociais, que sĂŁo usados para comprar apoio polĂtico, atualmente os governos possuem dĂvidas impagĂĄveis e, no ponto de vista deles, quanto maior for a inflação, melhor.
Isso porque a inflação torna essa dĂvida mais viĂĄvel, visto que o poder de compra do dinheiro diminui devido ao aumento da base monetĂĄria.
Desse ponto de vista, as metas de inflação simplesmente auxiliam o governo a não perder o controle dessa inflação proposital. Perder o controle dela significa entrar em uma hiperinflação, o que gera inquietação na sociedade e possivelmente revoltas e saques.
A hiperinflação, a partir de um certo ponto, causa um fenĂŽmeno de repĂșdio Ă moeda nacional (onde as pessoas começam a se recusar a transacionar naquela moeda), culminando na perda de função de unidade de conta (como pode ser observado na Venezuela e Argentina). EntĂŁo, no ponto de vista dos governos, o ideal Ă© manter a inflação o mais alta possĂvel sem que haja convulsĂŁo popular.
Ou seja, os poupadores e os governos estĂŁo inerentemente em campos opostos: os poupadores sĂŁo beneficiĂĄrios da deflação, pois isso aumenta o seu poder de compra no futuro, jĂĄ os governos se beneficiam da inflação, pois ela faz com que o poder de compra do dinheiro no futuro seja menor, tornando suas dĂvidas viĂĄveis.
Em outras palavras, os incentivos do governo e dos poupadores sĂŁo diametralmente opostos.
Mas o que isso significa? De uma maneira bem simplificada, as economias de todos os poupadores perdem seu poder de compra. Ou seja, quando o governo estabelece metas de inflação, na realidade ele estå estabelecendo metas de roubo do tempo dos poupadores.
Em poucas palavras: o governo estĂĄ roubando o nosso tempo de vida.
Isso porque, quando um indivĂduo se dedica a trabalhar e a economizar dinheiro, ele estĂĄ convertendo o seu trabalho em uma reserva de valor para o longo prazo chamada dinheiro.
Quando o governo ativamente possui metas para diluir o poder de compra dessa reserva de valor, efetivamente ele estĂĄ roubando o tempo que este indivĂduo se dedicou para acumulĂĄ-la. EntĂŁo, quando vocĂȘ ler sobre âmeta de inflaçãoâ, saiba que isso quer dizer âroubo do poder de compra do fruto do seu trabalhoâ.
O pleb bitcoinheiro Diego Kolling, no Twitter, fez uma boa sĂntese dessa questĂŁo de inflação planejada ser o oposto do que ocorreria em um livre mercado, onde a tendĂȘncia natural seria a deflação devido ao aumento de produtividade natural que o livre mercado gera:
Alta preferĂȘncia temporal
Uma hipĂłtese bastante conhecida entre quem estudou economia austrĂaca Ă© que a preferĂȘncia temporal das pessoas, ou seja, a capacidade delas de se planejarem para o longo prazo, Ă© diretamente afetada pela qualidade do dinheiro que elas tĂȘm acesso.
Por exemplo: o hĂĄbito do brasileiro de fazer a âcompra do mĂȘsâ tem origem no nosso perĂodo de hiperinflação no final dos anos 1980 e inĂcio dos anos 1990.
Isso ocorre pois em perĂodos inflacionĂĄrios o poder de compra do dinheiro se torna âum cubo de gelo derretendoâ, nas palavras do Michael Saylor. Ou seja, os indivĂduos sĂŁo incentivados a trazerem o consumo do futuro para o presente.
Um dinheiro que Ă© programado para se desvalorizar torna as pessoas mais imediatistas, uma vez que torna mais difĂcil o planejamento de longo prazo. Isso estimula as pessoas a consumirem o quanto antes, visto que no futuro esse dinheiro em suas mĂŁos terĂĄ um poder de compra menor.
Ou seja, um dinheiro que se desvaloriza estimula as pessoas a gastarem no presente ao invés de poupar para o futuro.
Essa questĂŁo de como a qualidade do dinheiro afeta os padrĂ”es de pensamento das pessoas serĂĄ aprofundada em um capĂtulo mais adiante, onde Ă© feita a comparação do perfil de personalidade dos bitcoinheiros do exterior com os bitcoinheiros brasileiros onde observamos que, em mĂ©dia, sĂŁo mais imediatistas que os bitcoinheiros gringos.
Os efeitos deletĂ©rios da mudança de preferĂȘncia temporal em uma sociedade com metas de inflação afetam todas as tomadas de decisĂŁo dos seus indivĂduos.
O que quero dizer com isso? Que em uma sociedade que incentiva a gratificação instantùnea e não escolhas que foquem o longo prazo, todas as escolhas serão baseadas nessa lógica.
EntĂŁo, as escolhas alimentares, por exemplo, nĂŁo levarĂŁo em conta os efeitos deletĂ©rios do açĂșcar e dos Ăłleos vegetais na saĂșde, mas no prazer imediato que uma batata frita e um refrigerante podem proporcionar.
Em outras palavras, estamos sacrificando o longo prazo pelo curto prazo.
Assim como os hĂĄbitos alimentares, podemos inferir que os hĂĄbitos de consumo tambĂ©m serĂŁo extremamente imediatistas. NĂŁo Ă© coincidĂȘncia que na sociedade atual existe o conceito de âfast fashionâ, onde o foco sĂŁo produtos fabricados para consumidos e descartados rapidamente.
Sociedade fiat
Essa mudança nos nossos padrÔes de consumo ocorre em todos os ramos da atividade humana.
Uma consequĂȘncia direta do dinheiro ter cada vez menos poder de compra Ă© que precisamos trabalhar cada vez mais para atingir os mesmos objetivos. Por isso, hoje em dia Ă© muito mais difĂcil para um millennial sonhar em comprar sua prĂłpria casa do que era no passado.
E isso nĂŁo Ă© uma teoria da conspiração ou um discurso de uma geração acomodada, Ă© fato observado nos dados. Ou, como o Michael Saylor diz, citando Hayek: o caminho da servidĂŁo consiste em vocĂȘ trabalhar cada vez mais para ganhar um dinheiro que vale cada vez menos.
Com cada vez menos tempo para qualquer coisa que não seja trabalho, uma vez que os frutos deste trabalho são cada vez menores e sendo constantemente erodidos propositalmente, a alimentação piora e comemos mais comida congelada e pedimos mais delivery ao invés de cozinhar.
Com menos tempo, nosso prazer passa a ser assistir uma sĂ©rie no Netflix ou comprar alguma tralha na Amazon ou no Shopee, e nĂŁo passear no parque ou fazer uma atividade fĂsica gratuita por duas horas no parque. Numa sociedade com cada vez menos tempo, o lazer precisa ser consumido em alta intensidade.
Isso Ă© a essĂȘncia da sociedade fiat atual, um mundo em que ninguĂ©m tem tempo para si. Mas poucos percebem a razĂŁo desta falta de tempo: ele estĂĄ sendo roubado pelos governos, quando estes desvalorizam o poder de compra do dinheiro.
A sociedade fiat também pode ser sintetizada nas palavras do personagem Tyler Durden de Clube da Luta:
âTrabalhamos em empregos que odiamos, para comprar porcarias que nĂŁo precisamos, com dinheiro que nĂŁo temos, para impressionar pessoas que nĂŁo gostamosâ.
Essa necessidade de impressionar o outro vem de uma falta de tempo para buscar o autoconhecimento.
Na sociedade fiat, a falta de tempo e a quantidade de ruĂdo gera indivĂduos nĂŁo pensantes, conhecidos como NPCs (non-player character, ou personagem nĂŁo jogĂĄvel) na comunidade bitcoinheira do Twitter. Quem nĂŁo tem tempo para respirar fundo e pensar, nĂŁo tem tempo para fugir da sociedade fiat e buscar entender as coisas por conta prĂłpria.
Dinheiro censurĂĄvel
O dinheiro fiat é um dinheiro censuråvel por definição, uma vez que o seu controle é dos governos, que possuem o poder de definir se determinada moeda fiduciåria ainda é vålida ou não. No Brasil, todo o dinheiro poupado pela população jå foi confiscado.
Isso aconteceu em março de 1990, quando o entĂŁo presidente Fernando Collor decretou o confisco das poupanças como medida para combater a inflação galopante que afetava o paĂs. Nessa Ă©poca, a poupança era a principal forma de investimento da grande maioria dos brasileiros que tinham algum dinheiro guardado, entĂŁo, na prĂĄtica, o estado se apropriou do fruto do trabalho da maioria dos brasileiros.
Confiscos de bens monetĂĄrios sĂŁo recorrentes na histĂłria, entĂŁo, para nĂŁo me estender muito, vou citar sĂł um exemplo clĂĄssico e outro contemporĂąneo de como, quando necessĂĄrio, mesmo os governos dos paĂses ditos âmais civilizadosâ tambĂ©m nĂŁo respeitam a propriedade privada dos seus cidadĂŁos:
Estados Unidos, 1933 â todo o ouro dos cidadĂŁos foi confiscado em 1933 em consequĂȘncia da crise de 1929. Isso aconteceu quando a Ordem Executiva 6102 Ă© assinada em 5 de abril de 1933 pelo presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt, âproibindo o acĂșmulo de moedas de ouro, barras de ouro e certificados de ouro dentro dos Estados Unidos continentaisâ.
CanadĂĄ, 2022 â O mesmo aconteceu recentemente nos protestos dos caminhoneiros canadenses, onde o governo do CanadĂĄ decretou o congelamento dos fundos do financiamento coletivo dos protestos.
AlĂ©m disso, indivĂduos tambĂ©m foram perseguidos e tiveram suas contas congeladas, efetivamente perdendo acesso ao seu prĂłprio dinheiro do dia para a noite por ter opiniĂ”es diferentes das que os polĂticos no poder possuem, graças a decisĂŁo de algum burocrata e alguns apertos de botĂŁo.
Exemplos nĂŁo faltam e o fato Ă© que enquanto o dinheiro continuar censurĂĄvel, indivĂduos ainda sofrerĂŁo as consequĂȘncias das barbeiragens econĂŽmicas dos estados e terĂŁo o seu dinheiro confiscado por estes mesmos estados em tentativas de auto salvação.
Mesmo o ouro Ă© facilmente identificĂĄvel e por conta disso o seu transporte Ă© de alto risco. Fugir de uma situação de crise ou de um regime tirĂąnico levando ouro simplesmente nĂŁo Ă© uma opção plausĂvel.
Não é viåvel esconder o patrimÎnio familiar acumulado numa maleta ou em outros lugares ao tentar cruzar as fronteiras e fugir dessas situaçÔes.
Nos dias de hoje, o dinheiro fiat estĂĄ, em sua maioria, sob controle dos estados e essa tendĂȘncia sĂł tende a piorar, uma vez que a digitalização do mundo Ă© um processo que segue e seguirĂĄ ocorrendo.
Conforme formos utilizando mais o dinheiro digital e menos as notas, serĂĄ cada vez mais fĂĄcil para o governo controlar a totalidade das moedas fiduciĂĄrias. Hoje, o acesso ao dinheiro fiduciĂĄrio estĂĄ sujeito ao cancelamento com alguns simples toques de botĂŁo e por alguma decisĂŁo monocrĂĄtica judicial.
O caso das ex-colĂłnias africanas
O fato do dinheiro ser controlado nĂŁo afeta somente a população local de determinado paĂs. Atualmente, ainda existe colonialismo, na forma de colonialismo monetĂĄrio, ocorrendo no mundo.
Um exemplo Ă© o caso da França e a utilização do Franco CFA (âCommunity For Ăfricaâ, ou âcomunidade para a Ăfricaâ em portuguĂȘs) como forma de controle e poder sob um vasto territĂłrio africano.
Atualmente, 16 ex-colĂŽnias francesas na Ăfrica possuem como moeda o Franco CFA. Somadas, essas naçÔes possuem uma população de cerca de 185 milhĂ”es de pessoas e ocupam uma ĂĄrea de cerca de 80% do tamanho da Ăndia.
SĂŁo elas: Senegal, Mali, Costa do Marfim, GuinĂ©-Bissau, Togo, Benim, Burquina Fasso, NĂger, CamarĂ”es, Chade, GabĂŁo, GuinĂ© Equatorial, RepĂșblica do Congo, RepĂșblica Centro-Africana e Comores. Vale ressaltar que dentre estas ex-colĂŽnias, dez estĂŁo entre os paĂses mais pobres da Ăfrica.
O modelo de controle via dominação monetåria foi inventado pelos nazistas, quando eles assumiram o controle das colÎnias francesas durante a segunda guerra mundial. Ao final da guerra, a França decidiu manter esse modelo, uma vez que ele era efetivo na dominação das colÎnias.
Atualmente, 100% do comĂ©rcio internacional destas naçÔes passa pelo tesouro da França. A França tambĂ©m faz a custĂłdia de 90% das reservas de ouro e 50% das reservas internacionais desses paĂses. E como âas reservasâ de um paĂs nĂŁo significa nada mais que o dinheiro do povo desse paĂs, isso significa que a poupança de cerca de 185 milhĂ”es de africanos Ă© controlada atĂ© hoje pela França.
A França tambĂ©m possui prioridade de acesso Ă s exportaçÔes desses paĂses, alĂ©m de receberem preços melhores. Estes paĂses tambĂ©m sĂł podem realizar importaçÔes a partir da conversĂŁo do Franco CFA em Euro, aumentando o controle da França e da Europa. E o Franco CFA nĂŁo pode ser convertido em nenhuma outra moeda do mundo, sĂł no Euro.
Desde a criação do Franco CFA, em 1945, atĂ© a adoção do Euro no final da dĂ©cada de 90, a desvalorização foi de 99,5%. Neste perĂodo, ocorreram episĂłdios em que o Franco CFA foi desvalorizado artificialmente em 50% da noite para o dia, como em 1994.
A justificativa oficial para essa desvalorização, medida oficial adotada pela França, Ă© que com isso as exportaçÔes se tornariam mais baratas e os paĂses africanos conseguiriam produzir a preços mais competitivos. Um ponto de vista mais cĂ©tico mostra que quem pĂŽde comprar estes produtos a preços mais âcompetitivosâ (baratos) foi a prĂłpria França.
Detalhe: a França pode imprimir o Franco CFA virtualmente de graça, o que significa dizer que eles possuem acesso a tudo que esses paĂses produzem a um custo zero. Esquema que lembra muito a descrição do inĂcio de empobrecimento da Ăfrica graças as miçangas de vidro no texto âMestres e Escravos do Dinheiroâ do Robert Breedlove, processo que facilitou significativamente toda a questĂŁo da escravidĂŁo e do comercio do atlĂąntico nos sĂ©culos seguintes.
Desbancarizados
Apesar de todas as crĂticas que sĂŁo dirigidas constantemente aos bancos, os serviços bancĂĄrios tambĂ©m apresentam vantagens Ăłbvias, como nĂŁo ter que esconder dinheiro pela casa e com isso se tornar um Ăłtimo alvo para roubos e furtos ou conectar-se com a rede financeira global e realizar pagamentos em tempo real.
Estamos tĂŁo acostumados com os benefĂcios de um sistema bancĂĄrio relativamente sĂłlido, com conta poupança (que Ă s vezes Ă© confiscada) e meios de pagamento como cheques e cartĂ”es, que nĂŁo pensamos muito em como seria a nossa vida se esse sistema bancĂĄrio nĂŁo existisse.
Entretanto, isso ocorre somente porque somos privilegiados. Atualmente, existem cerca de 1,7 bilhĂ”es de pessoas no mundo que nĂŁo possuem acesso a esse sistema. Essas pessoas sĂŁo conhecidas como âdesbancarizadasâ.
No Brasil, mesmo apĂłs a pandemia acelerar a digitalização e a bancarização por conta dos auxĂlios, ainda existem 34 milhĂ”es de brasileiros que utilizam muito pouco ou nem possuem conta em bancos. Em levantamento de janeiro de 2021, estimou-se que 10% dos brasileiros nĂŁo possuem conta em banco (16,3 milhĂ”es) e outros 11% (17,7 milhĂ”es) nĂŁo usaram a conta no mĂȘs anterior, totalizando 21% da população.
Pessoas desbancarizadas são marginalizadas da nossa sociedade. Elas não conseguem fazer planos de médio ou longo prazo e são forçadas a pensar sempre no dia a dia. Isso significa, entre outras coisas, que elas não conseguem se aposentar e tendem a continuar em trabalhos mal qualificados e mal remunerados ao longo de toda a sua velhice ou, pelo menos enquanto seu corpo permitir.
Geralmente pessoas sĂŁo desbancarizadas por diversos motivos, como falta de instrução e residĂȘncia em regiĂ”es menos desenvolvidas, nos rincĂ”es que o mundo moderno ainda mal chegou. Um desses diversos motivos Ă© porque essas pessoas nĂŁo sĂŁo economicamente viĂĄveis como clientes para os bancos. Elas representam um risco, nĂŁo uma oportunidade, e nĂŁo vale a pena para os bancos terem elas como clientes.
O exemplo de El Salvador
Ă natural que existam muito mais pessoas desbancarizadas em paĂses pobres, como Ă© o caso de El Salvador. AtĂ© 2020, cerca de 70% da população (cerca de 4.5 milhĂ”es de pessoas) era desbancarizada.
Além disso, cerca de 20% do PIB de El Salvador é proveniente de remessas internacionais que salvadorenhos que imigraram para os Estados Unidos e Europa enviam para seus parentes. Essas remessas eram alvo de taxas elevadas cobradas pelos intermediårios (Western Union principalmente), o que significava que a população jå pobre de El Salvador ainda perdia uma parte consideråvel do seu dinheiro.
Levando estes dois fatores em conta, El Salvador se tornou o primeiro paĂs do mundo a adotar o bitcoin como moeda legal. Com isso, os intermediĂĄrios sĂŁo cortados e hoje salvadorenhos que moram no exterior podem mandar dinheiro sem custos para seus familiares. Isso jĂĄ era possĂvel antes, mas a adoção como moeda legal incentivou a população a aprender mais sobre o bitcoin.
Mas o principal dessa adoção de El Salvador Ă© a bancarização dos desbancarizados. Em menos de um ano, mais de 60% da população, ou um total superior a 4 milhĂ”es de pessoas jĂĄ sĂŁo usuĂĄrios da carteira estatal Chivo. Ou seja, ainda existem cerca de 2.5 milhĂ”es de pessoas sem acesso a essa carteira. Nesse nĂșmero, alĂ©m dos desbancarizados, tambĂ©m estĂŁo incluĂdas as crianças. Ou seja, graças Ă adoção do bitcoin, do dia para a noite, mais de 2 milhĂ”es de pessoas se tornaram bancarizadas e hoje possuem acesso a uma rede monetĂĄria que as permite armazenar sua riqueza ao longo do tempo.
Ou sejaâŠ
Existem diversos problemas atrelados ao fato do dinheiro estar na mĂŁo do estado. Seja o fato dos estados possuĂrem metas de inflação que efetivamente roubam o tempo de vida e o trabalho acumulado dos seus cidadĂŁos, seja o fato do dinheiro ser censurĂĄvel e poder ser confiscado, alĂ©m de ser utilizado atĂ© hoje como forma de colonialismo. Existem tambĂ©m cerca de 1,7 bilhĂ”es de pessoas que nem possuem acesso ao sistema bancĂĄrio e com isso nĂŁo conseguem armazenar o fruto do seu trabalho para o longo prazo.
TambĂ©m existem as consequĂȘncias de segunda ordem que essas questĂ”es relacionadas ao dinheiro geram, como uma sociedade fiat baseada numa alta preferĂȘncia temporal onde ninguĂ©m tem tempo e a alimentação e os cuidados com a saĂșde sĂŁo menosprezados em detrimento de gratificaçÔes imediatas.
O objetivo deste texto era justamente ilustrar quais são os problemas atuais relacionados ao dinheiro, pois sem um diagnóstico claro do problema, a solução não faz sentido. Esse texto propositalmente não lidou com o tema da desigualdade porque esse tema jå foi abordado no texto sobre o Efeito Cantillon.
E, como dito acima, o bitcoin conserta isso.
Fonte: Livecoins