Desenvolvedoras trans brasileiras chegam ao topo com game Unsighted
SĂO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um pequeno estĂșdio de games brasileiro, formado por duas mulheres trans, conseguiu bater de frente com as gigantes americanas, chineses e japonesas que dominam o setor.
Inspirado nas franquias The Legend of Zelda, Metroid, Castlevania e Dark Souls, o jogo Unsighted narra um mundo em que o principal recurso não renovåvel estå se esgotando, e a salvação depende de uma androide negra.
O game foi desenvolvido por Fernanda Dias, 30, e Tiani Pixel, 26, que formam o Studio Pixel Punk. A dupla conseguiu o feito de ter um jogo no seleto rol dos brasileiros que alcançam destaque internacional.
Em uma indĂșstria que bombardeia os consumidores o tempo todo com o que hĂĄ de mais avançado e caro na computação grĂĄfica, Unsighted pisa no freio e integra a onda de games que provam que baixo orçamento e experiĂȘncias menos realistas nĂŁo impedem a realização de um tĂtulo de qualidade.
O jogo, que começou como um protĂłtipo apresentado no BIG Festival 2018, evento brasileiro anual com foco em games indie, levou trĂȘs anos e meio para ser desenvolvido e lançado comercialmente pela publisher (distribuidora) americana Humble Games, em setembro de 2021.
A trama de Unsighted, que abraça temas como ecologia, diversidade e tecnologia, se passa num futuro quase inabitĂĄvel em que a queda de um meteoro contendo a substĂąncia "anima" expulsa de vez os humanos e dĂĄ consciĂȘncia aos autĂŽmatos.
A descoberta dessa utilidade da "anima" faz os homens retornarem e entrarem em guerra contra os agora sencientes androides, para quem a escassez da substĂąncia nĂŁo significa a morte, mas a transformação em unsighted ("sem visĂŁo" ou "oculto", na tradução para o portuguĂȘs) -uma versĂŁo violenta deles mesmos.
Com uma jogabilidade que mistura diversas mecĂąnicas de clĂĄssicos dos videogames, o que faz Unsighted se destacar Ă© a sensação de urgĂȘncia que transmite. Como a substĂąncia "anima" estĂĄ se esgotando, todos os autĂŽnomos tĂȘm um prazo de validade, inclusive a protagonista, Alma.
O jogo impĂ”e um limite de tempo para ser concluĂdo, que atĂ© pode ser desativado no menu de opçÔes, mas que dĂĄ ao jogo um ritmo de fim do mundo, e ainda faz o jogador precisar escolher bem se quer salvar certos personagens em detrimento de outros.
"Unsighted pega muito dessas fĂłrmulas de jogos com os quais o jogador tem familiaridade e tenta fazer um twist em cima disso", explica Fernanda.
Fernanda e Tiani chamaram a atenção das empresas que financiam e distribuem games ao apresentarem, durante o BIG Festival, uma versão de Unsighted ainda longe de estar pronta, mas nem por isso incompleta.
Como Ă© corriqueiro na indĂșstria do entretenimento, os estĂșdios conseguem financiamento para produzir suas obras apĂłs apresentarem uma amostra do que serĂĄ feito ao longo da produção. No cinema, isso Ă© feito com curtas-metragens. Nos videogames, um protĂłtipo ou uma demo.
O diferencial do Studio Pixel Punk foi ter pensado no protĂłtipo de Unsighted como um recorte vertical do jogo, isto Ă©, em que fossem apresentadas suas principais caracterĂsticas grĂĄficas e de jogabilidade, mas sem deixar de lado detalhes menores, como menus, diĂĄlogos e personalizaçÔes.
"A gente sabia que para impressionar uma publisher precisava mostrar que sabia lidar com todos os passos do desenvolvimento, desde desenvolver uma gameplay legal até um menu de opçÔes", afirma Tiani.
"Ăs vezes parece que sĂŁo coisas bestas -muita gente deixa para a Ășltima hora-, mas a publisher sabe que isso Ă© importante, e que para o jogo dar certo isso tudo tem que estar implementado o mais cedo possĂvel. A gente queria mostrar essa profissionalização, que foi algo que aprendi nos trabalhos que fiz antes", completa a designer de games.
Num paĂs em que a maior parte dos gamers joga pelo celular, antes de se dedicar exclusivamente ao Unsighted, Tiani aperfeiçoava suas habilidades em programação com trabalhos pontuais para empresas brasileiras do ramo.
Recém-egressa da faculdade de jogos digitais, e tendo vivenciado a cultura dos modders (pessoas que modificam softwares) e desenvolvedores nos anos 2000, ela decidiu guardar dinheiro para trabalhar em um projeto autoral no qual realmente acreditasse.
Foi durante a prĂ©-produção do game que Tiani conheceu Fernanda, que havia estudado piano na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e desejava aplicar seu conhecimento de mĂșsica Ă produção de videogames. A parceria aconteceu e Dias acabou se tornando a responsĂĄvel por criar as baladas retrofuturistas que embalam Unsighted.
ApĂłs dezenas de publishers tanto brasileiras quanto estrangeiras entrarem em contato com o estĂșdio, as duas decidiram fechar com a americana Humble Games. A empresa, antes de começar a publicar produçÔes independentes em 2017, era conhecida pela venda filantrĂłpica de jogos sob o sistema "pague quanto quiser", em que o usuĂĄrio escolhia o preço que desejava pagar por um pacote de tĂtulos selecionados.
"Tem muita gente que cai no erro de assinar com a primeira publisher que aparece, mas a gente nĂŁo fez isso. Foi uma cautela que tivemos de analisar diferentes propostas e conseguir saber o que esperar de uma proposta desse tipo, do tipo de coisa que a gente pode pedir e negociar", explica Fernanda.
A forte presença de games mobile no paĂs ainda fez o Studio Pixel Punk cogitar lançar Unsighted para celulares, mas a entrada do investimento em dĂłlares e a certeza de que o jogo seria disponibilizado em consoles permitiram uma produção mais ambiciosa.
O investimento feito pela publisher, cuja quantia nĂŁo foi informada, foi, segundo elas, apenas uma pequena fração do que estĂșdios de paĂses ricos recebem. Distribuidoras menores acabam se interessando por jogos feitos em paĂses como Brasil e Ăndia por conta do baixo custo e da facilidade do retorno do capital.
Isso nĂŁo impediu, no entanto, que Unsighted fosse considerado um dos melhores jogos indies de 2021. Ou um dos melhores jogos e ponto final.
Na lista de melhores do ano do site Polygon, um dos principais veĂculos dos EUA sobre games, Unsighted ficou em 10Âș lugar, Ă frente de tĂtulos como Forza Horizon 5, Marvel's Guardians of the Galaxy e Ratchet and Clank: Rift Apart, produzidos e distribuĂdos por algumas das maiores empresas do ramo.
Galeria Veja imagens do game brasileiro Unsighted, produzido pelo Studio Pixel Punk Jogo lançado em 2021 foi considerado um dos melhores do ano pela crĂtica https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/1731852620765798-veja-cenas-do-game-brasileiro-unsighted-produzido-pelo-studio-pixel-punk *** A desigualdade de recursos se reflete nĂŁo sĂł no custeio do desenvolvimento do game, como tambĂ©m na prĂłpria estrutura de marketing e distribuição dos jogos. Por exemplo, enquanto um fenĂŽmeno indie americano como Hollow Knight, lançado em 2017, tem quase 200 mil avaliaçÔes na Steam, loja virtual da Valve, Unsighted tem cerca de 650.
O que ajudou na popularização do game foi seu lançamento sem custo adicional no Xbox Game Pass, serviço de assinaturas de jogos da Microsoft, plataforma em que Unsighted foi mais jogado (o game tambĂ©m estĂĄ disponĂvel para Nintendo Switch e PS4).
Hoje morando juntas em Santo André, as duas desenvolvedoras veem como positiva a incursão pelo desenvolvimento de jogos, mercado que movimentou US$ 180,3 bilhÔes em 2021.
O financiamento da publisher, o real desvalorizado e o sucesso comercial e de crĂtica do game fizeram com que elas pudessem dedicar os Ășltimos quatro anos exclusivamente ao trabalho com videogames, um sonho de criança, e ainda garantir parte do futuro do estĂșdio que fundaram.
"Com o que ganhamos com o Unsighted a gente consegue confortavelmente fazer um protĂłtipo para o nosso prĂłximo jogo, fazer o pitching [proposta] dele para uma publisher e continuar nesse ciclo de desenvolvimento", diz Fernanda.