Celular se isola como principal plataforma dos gamers no Brasil
SĂO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em 2018, a mesa gamer do estudante Matheus Lobo, 22 anos, teve um upgrade.
ApĂłs seis meses de economia, ele conseguiu substituir seu computador bĂĄsico, que usava para trabalhar, por um com processador, placa de vĂdeo e memĂłria melhores -componentes que sĂŁo chave para um bom desempenho nos jogos.
Era o inĂcio da instalação dos sonhos: computador com duas ou mais telas, diferentes controles, fones de ouvido com cancelamento de ruĂdo, mouse de alta precisĂŁo.
Quatro anos depois, a mesa gamer virou uma mesa de cabeceira: é ali que ele deixa as luvas de dedo, o cooler mobile (espécie de miniventilador para resfriar o celular) e o controle onde acopla o smartphone.
"Em 2020, o meu computador quebrou, e a manutenção era extremamente cara. Não achei viåvel. Com o preço da manutenção, eu poderia comprar um celular melhor", afirma. Desde então, Matheus joga quase exclusivamente pelo celular.
O comportamento Ă© uma tendĂȘncia mundial: em 2021, o mercado de jogos em plataformas mĂłveis (celulares e tablets) movimentou US$ 93,2 bilhĂ”es (R$ 468,4 bilhĂ”es), 52% de todo o faturamento do setor. Segundo relatĂłrio da NewZoo, Ă© um aumento de 7,3% em relação ao ano anterior.
O Brasil, que segundo levantamento da FGV tem mais smartphones do que pessoas, segue o mesmo rumo. De acordo com a Pesquisa Games Brasil, feita com 13.051 internautas entre fevereiro e março deste ano, 48,3% dos entrevistados que jogavam preferiam o celular, um aumento de 6,7 pontos percentuais em relação ao levantamento do ano passado.
Desses, 33,2% declaram jogar em dispositivos mĂłveis todos os dias; 70,7% dos que preferem mobile se consideram casuais.
Matheus, fĂŁ de games no celular "desde o jogo da cobrinha", viu o mercado se expandir nos Ășltimos anos. Com isso, embora tenha migrado para o mobile por uma questĂŁo financeira, hoje estĂĄ na plataforma por escolha.
Ele acha mais fĂĄcil mostrar novidades para os amigos e dar play em qualquer lugar, e quase nĂŁo liga o Xbox Series X que estĂĄ na sua sala. "Geralmente, os jogos que estĂŁo saindo para console estĂŁo saindo para celular", justifica.
Foram vĂĄrias as companhias que entraram na disputa por esse pĂșblico desde que a francesa Gameloft lançou o Spider-Man Unlimited, um dos mais famosos para celular, em 2014, e se tornou pioneira em produtos com narrativas e personagens mais complexos para a plataforma.
O Fortnite, famoso jogo de estratégias da Epic Games, por exemplo, pode ser jogado de qualquer plataforma -a mesma conta pode ser usada em computador, console ou celular e carrega o progresso do jogador. Jå o League of Legends, maior sucesso da Riot Games, tem a sua versão para mobile desde 2020.
HĂĄ ainda os que sĂŁo completamente voltados para smartphone, como o Pokemon Go. O objetivo do jogo, febre em 2016, Ă© a captura das famosas criaturas do desenho, que aparecem na cĂąmera do celular por meio de realidade aumentada.
No Brasil, a Wildlife Studios Ă© a principal empresa de games focada no mercado mobile. Ă a Ășnica do setor entre os unicĂłrnios --apelido das startups com valor de mercado superior a US$ 1 bilhĂŁo.
HĂĄ 17 anos no mercado, o presidente-executivo da distribuidora de jogos Level Up, GlĂĄucio Marques, afirma que o desenvolvimento dos games mobile teve um salto nos Ășltimos trĂȘs anos, acompanhando a evolução e popularização dos celulares --e pegando carona na digitalização da pandemia.
"Em relação a negĂłcios a gente vĂȘ uma grande oportunidade", afirma o empresĂĄrio, embora ressalte que, de modo geral, no console ou computador a experiĂȘncia Ă© mais rica, com grĂĄficos melhores, mais interação e eventualmente uma internet a cabo, mais rĂĄpida.
Em 2018, 14% dos acessos à plataforma de jogos da empresa de Marques era mobile. Em março deste ano, o dispositivo jå era responsåvel por 80% dos acessos, guinada que provocou mudanças na equipe. Dos cerca de 180 funcionårios contratados desde 2019, 40% foram para cargos ligados a serviços para celular ou tablet.
"A minha mĂŁe de 79 anos nunca havia jogado e, hĂĄ 5 anos, depois que comprou o primeiro smartphone, passou a jogar diariamente e investe nisso", conta Marques.
A prĂłxima grande mudança, aposta ele, serĂĄ a quinta geração de rede de celulares, que deve chegar ainda este ano no Brasil. "O 5g vai potencializar esse crescimento para produtos melhores. Agora, precisamos ver em quanto tempo a população em geral vai ter acesso. Assim como o pĂșblico com celulares melhores, Ă© um nicho", afirma.
PĂBLICO DO CELULAR Ă MAIS DIVERSO
"Quando vocĂȘ vai para plataformas como console e computador, a experiĂȘncia de games Ă© elitizada", afirma Carlos Silva, sĂłcio da Go Gamers. "O celular, aparelho que vocĂȘ utiliza no seu cotidiano, Ă© o mesmo que vocĂȘ pode jogar."
De acordo com a Pesquisa Games Brasil, o pĂșblico das classes C e D, que representa 38% dos jogadores de console e 41% dos de computador, Ă© 59% dos jogadores de smartphone e tablet.
A diferença de custo ficou ainda mais evidente apĂłs o inĂcio da pandemia, quando a interrupção das cadeias globais de suprimentos desataram uma crise no mercado de microchips --componente essencial para eletrĂŽnicos.
O dólar passando os R$ 5, em um aumento de 24% desde o fim de 2019, também não ajuda quem quer comprar importados.
O levantamento aponta que 67,1% dos entrevistados gastaram menos de R$ 1.250 no Ășltimo ano em equipamentos para jogos, valor bem abaixo dos cerca de R$ 2.300 necessĂĄrios para adquirir um Xbox Series S, console mais barato da nova geração.
O mesmo fenĂŽmeno Ă© observado no investimento da experiĂȘncia: 61,6% dos entrevistados dizem ter gasto em jogos no Ășltimo ano menos de R$ 300 -preço de um game de primeira linha da Nintendo no Brasil. Entre os 17,3% que dizem nĂŁo ter gasto nada em jogos no Ășltimo ano, 40,2% afirmaram que nĂŁo o fizeram por causa do preço.
Apesar da inflação, os gamers resistem. Na pesquisa de 2022, 74,5% dos entrevistados diziam ter costume de jogar jogos eletrÎnicos, variação dentro da margem de erro de dois pontos percentuais em relação aos 72% de 2021.
"O pĂșblico de games continuou muito engajado", diz Silva. Foram 41,7% os entrevistados que concordaram totalmente sobre terem jogado mais durante o perĂodo de isolamento social.
A diversidade no celular abarca tambĂ©m gĂȘnero. Mulheres sĂŁo 60,4% entre os jogadores, cenĂĄrio que se inverte no console, onde 63,9% sĂŁo homens. No computador, o pĂșblico masculino representa 58,9% dos gamers.
ImersĂŁo e recursos grĂĄficos sĂŁo diferenças mais sentidas A analista de redes sociais Stheephanny Andrade, que descobriu o mundo dos games com Super Mario e Donkey Kong em um Super Nintendo da dĂ©cada de 1990, tem se dedicado cada vez mais ao celular. Começou com jogos mais bĂĄsicos, incluindo o conhecido quebra-cabeças Candy Crush, atĂ© conhecer, em 2017, a versĂŁo para celular do Free Fire, game de ação do estĂșdio Garena.
Hoje, aos 27 anos, ela participa de um grupo para jogar PlayerUnknown's Battlegrounds, ou PUBG, em campeonatos amadores, parte dos diversos eventos voltados só para jogadores de celular. A Mobile Pro League Brazil Spring deste ano, competição profissional do game ao qual Stheephanny se dedica, teve um pico de 44.323 espectadores, segundo o eSports Charts.
Embora seja uma entusiasta da praticidade do celular, Stheephanny ainda joga por outras plataformas. "A imersĂŁo quando eu estou jogando no PC ou no console Ă© bem maior. Os grĂĄficos hoje em dia sĂŁo bons no smartphone, mas quando vocĂȘ vai jogar aquele mesmo jogo em uma versĂŁo para computador, tem uma grande diferença. Parece que vocĂȘ se teletransporta para dentro do jogo", afirma.