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Brasileiros viram 'bots humanos' por menos de R$ 0,01

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FLORIANÓPOLIS, SC, E BELO HOROZONTE, MG (FOLHAPRESS) - Uma multidĂŁo de brasileiros passa os dias seguindo, comentando e curtindo perfis de desconhecidos por milĂ©simos de centavo. SĂŁo a mĂŁo de obra das fazendas de clique.

AtraĂ­dos por promessas de renda extra, eles chegam a gerir 500 contas falsas, o que praticamente os transforma em "bots humanos".

Acontece assim: de um lado, empresas especializadas, conhecidas como plataformas de clique, vendem pacotes de "engajamento" a clientes, que podem adquirir milhares de seguidores nas redes sociais de forma instantùnea, além de combos com likes, comentårios e até visualizaçÔes em vídeos.

Os valores desses serviços variam, mas são, em geral, acessíveis. É possível encontrar pacotes de mil curtidas no Instagram por R$ 0,60.

Mais curtidas ou seguidores pode significar mais relevùncia para clientes de uma empresa, ou chamar mais a atenção de marcas interessadas em publicidade nos perfis, além de fazer com que sejam privilegiados pelos algoritmos das redes.

As companhias afirmam a quem as contrata que os impulsionamentos sĂŁo feitos atravĂ©s de pessoas reais e contas autĂȘnticas e que esse seria o diferencial dos serviços.

Na outra ponta, sites pagam a trabalhadores de R$ 0,001 a R$ 0,05 para executar cada uma das interaçÔes, designadas como tarefas.

Um saldo mĂ­nimo em torno de R$ 20 geralmente Ă© exigido para que os valores sejam sacados. No entanto, para chegar a esse montante, Ă© necessĂĄrio completar cerca de 20 mil tarefas.

Para contornar os baixos rendimentos, eles sĂŁo incentivados a criar mĂșltiplas contas e assim ampliar o nĂșmero de atividades cumpridas. Muitos passam a realizar as açÔes de forma automatizada atravĂ©s de softwares, que podem ser oferecidos pelas prĂłprias plataformas.

Esse tipo de comportamento artificial viola os termos de uso de redes como Instagram, Facebook e TikTok, e, quando detectado, os perfis costumam ser suspensos ou bloqueados.

Os ganhos permitidos com a automatização, porém, são limitados. Um homem que conversou com a Folha, e não quis se identificar, conta que programou bots para fazerem, por ele, o trabalho em vårias plataformas.

Com trĂȘs computadores ligados o dia inteiro, cada um com vĂĄrias janelas e abas simultĂąneas, ele diz que recebia mais de R$ 2.000 por mĂȘs.

Exemplo parecido é o de Paulo Henrique, 29, que afirma faturar R$ 1.000 mensalmente por meio do trabalho com cliques na Dizu. A estratégia: cem contas em diversas redes sociais, todas falsas.

NĂŁo foi difĂ­cil encontrar o arranjo: ele diz ter optado por um programa de bots vendido pela prĂłpria plataforma.

"Eu sigo tanta gente no meu Instagram pessoal, e agora recebendo para fazer isso, acaba sendo mais prazeroso usar a rede social (rs)", justifica.

O paulista diz ainda que costumava ganhar o dobro, quando chegou a gerir 500 perfis, mas acabou perdendo todos de uma vez e ficou sem receber.

A Dizu, onde Paulo trabalha, afirma que nĂŁo hĂĄ limites para o nĂșmero de contas que podem se vincular ao site, "desde que todos os perfis pareçam ser de pessoas reais".

Além de evitar bloqueios, contas mais realistas recebem algumas fraçÔes de centavo a mais para cada interação.

Por isso, hĂĄ um intenso "mercado paralelo" de venda de perfis prontos e atĂ© de autenticação por nĂșmero de celular --os valores variam de R$ 1,50 a R$ 5, a depender do capricho na criação.

"Parece uma feira livre", diz Rafael Grohmann, que coordena o Laboratório de Pesquisa DigiLabour, com apoio da Universidade de Witwatersrand (África do Sul), e do projeto Fairwork, vinculado à Universidade de Oxford.

Segundo o pesquisador, são vendidos desde "perfis de fãs de BBB" a "perfis de unha" e até "packs de fotos" para ilustrar os feeds.

"SĂł existe hoje uma 'economia de influenciadores' porque hĂĄ fazendas de clique; elas tĂȘm um papel central, e Ă© sobre isso que as agĂȘncias de marketing e de influĂȘncia precisam pensar", aponta Grohmann.

Circula em grupos de WhatsApp, Telegram e em canais do YouTube uma infinidade de truques e dicas para escapar das puniçÔes pelo uso artificial das redes sociais. O mais importante é que as contas pareçam orgùnicas, com fotos, curtidas e seguidores.

O youtuber Såvio Augusto, por exemplo, då dicas para quem quer criar suas contas de forma "manual", sem comprå-las prontas. Ele tem 119 mil inscritos e milhÔes de visualizaçÔes.

Para começar, um aspecto valorizado Ă© que a foto de perfil seja de uma pessoa --mas nĂŁo deve ser de ninguĂ©m real, para nĂŁo cometer crime. A saĂ­da Ă© inusitada: o youtuber indica o uso de imagens de rostos criados por inteligĂȘncia artificial.

SĂĄvio argumenta que, entĂŁo, os perfis criados nĂŁo sĂŁo 'fakes', jĂĄ que "perfil fake Ă© quando vocĂȘ copia a imagem de uma pessoa. Nesse caso, vocĂȘ vai utilizar imagens de pessoas que nĂŁo existem".

Jå para o feed, a dica do youtuber para conseguir curtidas rapidamente é postar fotos de animais fofos e usar hashtags. Depois de ter um perfil completo, os usuårios ainda são orientados a revezar as contas e trocar o endereço de IP do dispositivo regularmente, para chamar menos a atenção da moderação das redes.

NĂŁo hĂĄ lei no paĂ­s que proĂ­ba a venda de impulsionamento nos moldes das fazendas de clique.

O advogado especializado em direito digital José Antonio Milagre explica que só hå crime se forem utilizadas informaçÔes e imagens de outras pessoas reais nas contas, o que seria entendido como crime de falsa identidade.

O panorama pode mudar caso a Lei das Fake News seja aprovada pelo Congresso.

A legislação busca, entre outras coisas, inibir o funcionamento de contas inautĂȘnticas nas redes. NĂŁo hĂĄ levantamento sobre o nĂșmero de pessoas que atuam em fazendas de clique no Brasil.

Um estudo publicado em 2021, na revista Scielo, dĂĄ pistas ao mostrar o tamanho do pĂșblico que acessa esses sites.

Em junho de 2021, a Dizu teve 1,3 milhĂŁo de visitas individuais --seguida da GanharNoInsta (1,2 milhĂŁo), SigaSocial (276 mil), Kzom (190 mil) e Everve (67 mil).

Segundo a pesquisa, essas plataformas tĂȘm a maior quantidade de trabalhadores dos microsserviços no Brasil.

O trabalho de Matheus Viana Braz, doutor em Psicologia pela UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais) caracteriza os microsserviços como trabalhos digitais de baixa complexidade --como digitar e clicar -- que exigem pouca qualificação e são divididos em pequenas tarefas.

Embora tenham se originado em paĂ­ses do Sudeste AsiĂĄtico, as plataformas de clique floresceram na AmĂ©rica Latina nos Ășltimos anos.

Segundo Grohmann, o Brasil se destaca pela expansĂŁo de um mercado com empresas sediadas no paĂ­s, com sites em portuguĂȘs e que atendem a um mercado local de influĂȘncia nas redes.

Os trabalhadores que conversaram com a Folha relatam que, entre os compradores, os perfis que mais se repetem sĂŁo os de artistas, influenciadores e atletas.

O levantamento de Grohmann, por sua vez, aponta que os clientes mais comuns sĂŁo pequenos empreendedores: "Tipo o restaurante do interior de GoiĂĄs que nĂŁo tem dinheiro para dar ao iFood e precisa 'bombar' no Instagram para realizar vendas", afirma o pesquisador.

A reportagem enviou perguntas na segunda-feira (16) para trĂȘs das principais redes sociais, assim como para sites de venda de seguidores e para plataformas de fazendas de clique.

O TikTok afirma apenas que as prĂĄticas de spam e de engajamento falso sĂŁo proibidas de acordo com as diretrizes da comunidade na rede. Segundo a nota, foram removidos mais de 400 milhĂ”es de seguidores falsos e 150 milhĂ”es de contas inautĂȘnticas em 2021.

A Meta, empresa responsĂĄvel pelo Facebook e Instagram, declarou que deseja que o conteĂșdo em suas redes seja autĂȘntico e feito por pessoas reais, nĂŁo por bots ou outras contas que tentam enganar usuĂĄrios. Desde 2020, a empresa adicionou etapas adicionais de checagem de identidade quando identifica padrĂ”es suspeitos de comportamento inautĂȘntico.

A assessoria diz ainda que a companhia dedica "recursos significativos" para combater esse tipo de abuso e que, em alguns casos, toma "medidas legais contra os responsĂĄveis".

JĂĄ os sites de venda de seguidores (Turbine Social, Turbine digital, Impulsogram, AgĂȘncia SegBrasil, Bombenaweb) e as plataformas dos trabalhadores de clique (Kzom, Dizu e GanharNoInsta) nĂŁo responderam ao contato por email.

Atividade é forma de precarização, dizem especialistas

Quando os perfis falsos sĂŁo suspensos pelas redes sociais, os trabalhadores por trĂĄs ficam impossibilitados de receber os ganhos acumulados.

Isso porque, apesar de estimularem a criação de bots, as plataformas de clique não se responsabilizam pelas puniçÔes decorrentes da pråtica e alegam não ser possível verificar o cumprimento das tarefas em casos de bloqueio.

Quando as puniçÔes sobre as contas falsas geram uma perda repentina de seguidores, os clientes geralmente são compensados pelas empresas, que descontam dos ganhos dos colaboradores.

Assim, mesmo que tenham trabalhado um mĂȘs inteiro, eles sĂŁo pagos parcialmente --ou nĂŁo sĂŁo pagos.

A atividade Ă© vista por especialistas como mais uma modalidade de trabalho precarizado por plataforma, que cresce de forma desregulada.

Desempregada hĂĄ quatro anos, a auxiliar administrativa Larissa CĂąmara, 30, encontrou nos sites de cliques uma fonte de renda.

Ela optou por nĂŁo utilizar automaçÔes nem robĂŽs e, por isso, precisa dedicar 12 horas diĂĄrias para interagir em 115 contas falsas no Instagram e no TikTok. Pelo trabalho, recebe cerca de R$ 230 por mĂȘs.

Larissa conta que tem investido mais nas interaçÔes pelo TikTok, que, de acordo com ela, Ă© uma rede "mais liberal" do que o Instagram e derruba as contas com menos frequĂȘncia.

Valores ainda mais baixos chegam atĂ© o bolso de NatĂĄlia Oliveira, 26, que tambĂ©m estĂĄ desempregada e passou a trabalhar com cliques no inĂ­cio da pandemia. A carioca conta que, num mĂȘs bom, ganha R$ 50 pelo trabalho em dois sites, Dizu e GanharNoInsta.

Ela jå usou bots, mas desistiu da estratégia depois que teve diversos perfis bloqueados e ficou sem pagamento. Hoje, trabalhando de 6 a 7 horas por dia, com 24 perfis, diz que gostaria de procurar um emprego com carteira assinada se tivesse mais tempo.

"É muito interessante como as fazendas de clique acabam atualizando e radicalizan- do a informalidade do tra- balho, e com características brasileiras", afirma o pesquisador Grohmann.

"Em vez de acharmos que tudo vem de inteligĂȘncia artificial, automação e bots, precisamos visibilizar o trabalho desses 'bots humanos' em plataformas parasitas", escreveu o pesquisador em artigo publicado no Nexo Jornal.

Também conhecido como crowdwork, esse tipo de trabalho digital é caracterizado por baixa complexidade --digitar, arrastar e clicar--, baixa qualificação e divisão em pequenas tarefas.

Esses trabalhadores normalmente não conhecem quem solicitou seus serviços e não sabem qual a finalidade da tarefa que lhe foi requisitada. A margem de negociação é limitada e não hå proteção social ou trabalhista, segundo a pesquisa de Braz.

Além das interaçÔes em redes sociais, outros tipos de microsserviço disponíveis na internet envolvem assistir a vídeos, interagir com publicidades e até resolver captchas --os quebra-cabeças usados para testar se o usuårio é humano ou robÎ.

Às vezes, se algum robĂŽ nĂŁo consegue resolver o captcha, ele o envia atravĂ©s de uma plataforma para uma pessoa, que o resolve em troca de um centĂ©simo de centavo, em mĂ©dia.

Em 2021, os colaboradores de pelo menos quatro fazendas articularam uma tentativa de paralisação por pagamentos mais justos.

Enviando mensagens em massa para o suporte dos sites, eles ameaçaram deixar de realizar as tarefas e parar de seguir todas as påginas de clientes. Segundo relatos na internet, a mobilização fez com que os sites atualizassem regras, passando a banir usuårios que disparassem mensagens de forma coordenada.

O projeto Fairwork define princípios para o trabalho decente em plataformas digitais, como o pagamento em dia levando em conta todas as tarefas concluídas e o total de horas trabalhadas, a proibição de contratos que "tirem, de forma injustificada, a responsabilidade das plataformas" e o "direito de recorrer de bloqueios e desativaçÔes e de serem informados das razÔes por trås dessas decisÔes".

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