Bitcoin e o Surf
Aparentemente nĂŁo poderia existir dois assuntos mais desconectados do que o Bitcoin e o surf, certo? Um Ă© o dinheiro mĂĄgico da internet, criado por nerds para nerds, o outro Ă© o esporte extremamente fĂsico e de intenso contato com a natureza e seus elementos.
Contudo, as aparĂȘncias enganam e nĂŁo Ă© a toa que o embriĂŁo da adoção do Bitcoin por El Salvador surgiu em um pacato vilarejo de surf. O objetivo deste texto Ă© mostrar que, embaixo da superfĂcie, estes dois mundos sĂŁo muito mais conectados do que aparentam.
A live recente do Kelly Slater, 11 vezes campeão mundial e conhecido como o Pelé do surf, fez recentemente com Jack Mallers, o CEO da Strike, exemplifica essa conexão.
Prova de Trabalho
Existe uma expressĂŁo no mundo do surf que Ă© âsurf is free, but you gotta payâ. Ou, em portuguĂȘs, âo surf Ă© de graça, mas vocĂȘ tem que pagarâ.
Essa frase Ă© utilizada para ilustrar como o acesso ao mar Ă© de graça, mas vocĂȘ paga para surfar com o seu esforço fĂsico e, muitas vezes, com a sua integridade fĂsica. Ă a versĂŁo surfĂstica do lema âno pain, no gainâ, dos marombeiros, comunidade que tambĂ©m Ă© bastante representada entre os bitcoinheiros.
Poucas coisas são tão prova-de-trabalho quanto o surf. Mesmo outros esportes não se comparam. Em um dia bom de surf, um surfista provavelmente ficou remando por algumas horas para conseguir ficar alguns poucos minutos de pé em cima da prancha.
Diferente do que ocorre em outros esportes, no surf vocĂȘ estĂĄ fora do seu ambiente e interagindo com a vida selvagem.
VocĂȘ consegue imaginar o Neymar indo cobrar um pĂȘnalti na final de Champions League e de repente aparecer um leĂŁo tentando comer ele? Bom, isso jĂĄ aconteceu no surf.
Na final de um campeonato da primeira divisĂŁo do surf, o tricampeĂŁo mundial Mick Fanning foi atacado por um tubarĂŁo branco. Eu estava assistindo ao vivo e lembro como se fosse hoje o estado de choque total na comunidade do surf.
https://www.youtube.com/watch?v=xrt27dZ7DOA
AlĂ©m de enfrentar os elementos e a vida selvagem, o surf tambĂ©m tem outro fator que o diferencia da grande maioria dos esportes: vocĂȘ nĂŁo tem uma quadra estĂĄtica para treinar.
O mar muda constantemente devido a variação do vento e das marĂ©s, e devido a força e direção das ondulaçÔes. NĂŁo existem duas ondas iguais, muito menos dois dias com condiçÔes iguais. Isso significa que a capacidade de leitura do mar Ă© uma das habilidades mais importantes para um surfista, ele basicamente precisa ser capaz de âpreverâ o futuro.
No surf, todos estĂŁo competindo pelas mesmas ondas. E para ganhar essa competição e conseguir pegar uma onda, vocĂȘ precisa de muito preparo fĂsico e essa capacidade de prever o futuro. Isso porque vocĂȘ precisa estar no lugar certo, na hora certa e antes de todos os outros surfistas que tambĂ©m estĂŁo no mar tentando pegar a mesma onda.
A prova-de-trabalho dos surfistas Ă© algo auto-evidente. Basta 5 minutos olhando o mar que fica Ăłbvio quem sabe o que estĂĄ fazendo e quem nĂŁo sabe o que estĂĄ fazendo.
Da mesma forma que o mar, o acesso Ă educação e ao conhecimento sobre o Bitcoin tambĂ©m Ă© grĂĄtis. Existem uma infinidade de conteĂșdos em inglĂȘs e hoje em dia o ecossistema brasileiro jĂĄ estĂĄ bem mais maduro do que no passado.
Canais de YouTube como o dos Bitcoinheiros, do Korea, do Eu Uso BTC e do JaraguĂĄ sĂŁo exemplos disso. TambĂ©m existe muito conteĂșdo bom no Instagram, como as meninas do Usecripto, a Madu, o HansInveste ou o Explica Bitcoin, alĂ©m do podcast 21 milhĂ”es. AlĂ©m, Ă© claro, do Twitter, onde as discussĂ”es de alto nĂvel entre os bitcoinheiros realmente ocorrem.
Hoje, qualquer pessoa com interesse consegue aprender sobre o Bitcoin. Entretanto, mesmo sendo grĂĄtis, aprender sobre o Bitcoin nĂŁo Ă© simples e vocĂȘ tem que pagar com seu tempo e seu esforço.
O mecanismo de prova-de-trabalho Ă© o pilar central do protocolo do Bitcoin. Ele estĂĄ no cerne da diferença entre o Bitcoin e outras altcoins baseadas na prova-de-participação: A prova-de-trabalho Ă© inerentemente justa, pois ela troca diretamente energia por poder computacional (e vocĂȘ nĂŁo consegue trapacear no uso da energia). Enquanto isso, a prova-de-participação Ă© um sistema baseado em âquem tem mais, manda maisâ.
Essa prova-de-trabalho tambĂ©m Ă© percebida quando vocĂȘ conversa sobre o Bitcoin com alguĂ©m. Ă auto-evidente pela compreensĂŁo da pessoa sobre este tema complexo a quantidade de trabalho que ela realizou.
O Bitcoin seleciona as pessoas que entendem o valor do trabalho e que se dedicam a ele. Os crĂticos nunca tĂȘm argumentos decentes porque eles nunca estudaram mais do que algumas poucas horas.
Eles não possuem prova-de-trabalho, e por isso os seus argumentos são tão rasos. Para começar a entender realmente sobre o Bitcoin é necessårio algumas dezenas ou mesmo centenas de horas de estudo.
Igualdade e Humildade
âSomos todos iguais perante uma ondaâ. Laird Hamilton, surfista de ondas gigantes, inventor do town in, do stand up e do foiling, e pai da Bethany Hamilton.
NĂŁo importa sua cor, sua religiĂŁo ou seu sexo, no surf pega a onda quem estiver no lugar certo, na hora certa e antes de outro surfista. Um surfista sempre tem um grande respeito pelo mar e sabe que a natureza Ă© mais forte que ele. O mar ensina humildade melhor do que qualquer livro de alto ajuda, pois a cada erro vocĂȘ Ă© punido e paga levando um caldo.
O Bitcoin tambĂ©m Ă© uma rede sem capacidade de discriminação e todos os usuĂĄrios sĂŁo iguais perante o protocolo. NĂŁo importa se vocĂȘ tenha apenas alguns satoshis ou vĂĄrios bitcoins, os seus direitos sĂŁo exatamente os mesmos. NĂŁo existe um âBitcoin PersonalitĂ©â para os bitcoinheiros mais abastados, com condiçÔes especiais, gerentes exclusivos e juros menores.
Ser um bitcoinheiro também é um atestado de humildade. Não existe praticamente ninguém que entendeu o Bitcoin de primeira. Geralmente, um bitcoinheiro jå havia escutado a respeito do Bitcoin algumas vezes e o rejeitou.
A capacidade de engolir o ego e assumir um erro Ă© algo raro no ser humano, e por isso tanta gente inteligente reluta em assumir que estava errada em relação ao Bitcoin. Ă mais fĂĄcil se esconder em argumentos tolos como âse ele Ă© divisĂvel ele nĂŁo Ă© escassoâ ou âsĂŁo tulipas modernasâ, como os faria limers costumam fazer.
Liberdade
Talvez a maior conexĂŁo entre essas tribos aparentemente tĂŁo distintas seja o amor pela liberdade. O surfista geralmente Ă© aquele bicho-grilo que nunca se submeteu ao sistema e segue usando roupas de surf e havainas.
Ele sempre Ă© considerado vagabundo e maconheiro, alguĂ©m sem futuro e com quem vocĂȘ nĂŁo deveria se relacionar. O sentimento de busca por liberdade sempre levou os surfistas a explorarem o novo e desconhecido.
O sonho de todo surfista Ă© fazer uma surftrip (viagem dedicada exclusivamente a surfar) e descobrir ondas novas e vazias. Hoje em dia isso Ă© mais difĂcil, mas por dĂ©cadas foi esse sentimento que impulsionou geraçÔes de surfistas a explorar e descobrir novos lugares.
El Zonte provavelmente compartilha essa histĂłria com milhares de outras localidades espalhadas pelo mundo. NĂŁo Ă© exagero afirmar que se nĂŁo fossem os surfistas, os litorais do mundo seriam bem menos explorados. Diversas vilas de pescadores nĂŁo teriam se desenvolvido para receber a comunidade de bichos-grilos que veio de fora em busca de altas ondas.
Os bitcoinheiros tambĂ©m valorizam a liberdade acima de tudo. Em 2017-2018, o Bitcoin passou por uma âguerra cĂvilâ em nome da liberdade, ou seja, em nome de manter a rede descentralizada.
Esse evento é conhecido como Block Size Wars (Guerra do Tamanho dos Blocos), quando as maiores empresas e mineradores tentaram forçar uma mudança que centralizaria a rede.
Foi graças aos plebeus bitcoinheiros e o seu amor pela liberdade e pela descentralização que esta mudança foi impedida. O amor pela liberdade Ă© um dos princĂpios bĂĄsicos dos bitcoinheiros plebeus, e os fizeram enfrentarem as grandes instituiçÔes que estavam atacando os seus princĂpios.
Foi graças a esse amor pela liberdade que eles se mantiveram firme e por fim saĂram vencedores na guerra civil.
Em um pensamento mais amplo, os bitcoinheiros entenderam que sĂł existe uma forma real de liberdade: a liberdade econĂŽmica. Sem ela, todos estamos presos em uma âescravidĂ”esâ por dĂvida com nosso eu do futuro. E um dinheiro deflacionĂĄrio como o bitcoin conserta isso.
A Tribo
Tanto os surfistas como os bitcoinheiros possuem um forte senso de tribo e pertencimento, baseado em uma sĂ©rie de valores e crenças compartilhadas entre si. Essas duas tribos se sentem deslocadas no mundo ânormalâ, mas quando encontram outro membro da sua tribo a conexĂŁo tende a ser imediata.
Esse sentimento talvez seja mais comum entre os surfistas, visto que eles nĂŁo possuem como valor importante a privacidade. Ă extremamente fĂĄcil reconhecer um surfista na multidĂŁo. Ele provavelmente estarĂĄ bronzeado, com a barba por fazer, cabelo desgrenhado e possivelmente os olhos vermelhos devido ao sal da ĂĄgua do mar.
Para os bitcoinheiros, esse sentimento Ă© mais raro. Contudo, todos que jĂĄ participaram de alguma conferĂȘncia ou encontro sabe do que estou falando.
Eu vivenciei isso plenamente na minha estadia em El Salvador para a conferĂȘncia Adopting Bitcoin e espero que todos vocĂȘs tenham a chance de vivenciar o mesmo. Ă maravilhoso poder conversar livremente com pessoas que entendem os conceitos bĂĄsicos e que tambĂ©m possuem uma grande paixĂŁo com o ethos dos bitcoinheiros.
Contracultura
âO mundo nĂŁo precisa de mais conformistas. Se vocĂȘ nĂŁo se encaixa, comemore isso e, em seguida, prepare-se para defender sua posição.â Laird Hamilton
Essa conexĂŁo instantĂąnea e senso de tribo existem de maneira tĂŁo forte nessas duas comunidades porque ambas sempre foram rejeitadas pela comunidade dos ânormaisâ.
O surfista sempre foi considerado o maconheiro sem futuro, alguĂ©m que se preocupava mais com a liberdade do que com bens materiais, pecado gravĂssimo na sociedade fiat. Hoje em dia, o surf estĂĄ mais popularizado devido ao fenĂŽmeno âBrazilian Stormâ (Tempestade Brasileira), que jĂĄ trouxe 5 tĂtulos mundiais desde 2014 (3x Gabriel Medina, 1x Adriano âMineirinhoâ de Souza, 1x Ătalo Ferreira).
Bitcoin continua sendo um movimento de contracultura, rejeitado pela grande maioria das pessoas. Esse sentimento de ânĂłs contra o mundoâ Ă© algo que ajuda a unir essas duas tribos. E ambas possuem grandes provas-de-trabalho que justificam essas crenças e valores, os fazendo rejeitar a cultura normie. Essas duas tribos estĂŁo em busca de relaçÔes verdadeiras com pessoas com mentalidade prĂłximas e nĂŁo se satisfazem com menos que isso.
Bitcoin Beach
âVim para El Salvador em uma surtrip e me apaixonei. A ĂĄgua estĂĄ quente, as ondas sĂŁo Ăłtimas, as pessoas sĂŁo super amigĂĄveis. EntĂŁo, minha esposa e eu decidimos comprar uma casa e nos mudar para lĂĄ â isso foi hĂĄ 14 anos.â Michael Peterson.
Reza a lenda que o diretor da Bitcoin Beach Michael Peterson se mudou semipermanente para El Salvador, por um simples motivo: ele queria um lugar para surfar no inverno. Ele e sua famĂlia se mudaram em 2005. O outro criador da Bitcoin Beach Ă© Jorge Valenzuela, um surfista local de 32 anos que jĂĄ trabalhava em um projeto social.
Em fevereiro deste ano, o surfista Jack Mallers passou uma temporada em El Zonte. ApĂłs a sessĂŁo de surf matinal, ele e sua equipe desenvolveram o Strike, um app integrado a rede Lightning. Alguns meses depois, este surfista estava conversando com o presidente de El Salvador.
Concluindo
Enfim, não é a toa que El Zonte, uma praia com altas ondas e frequentada por diversos surfistas, foi o local escolhido por um doador anÎnimo para iniciar o projeto da Bitcoin Beach com a doação de algumas moedas.
Muito provavelmente este anĂŽnimo era um dos vĂĄrios bitcoinheiros surfistas amantes de liberdade que entendem profundamente a conexĂŁo entre esses dois mundos e sabem como o Bitcoin pode ajudar as comunidades carentes â afinal, muitas das melhores ondas do mundo quebram em localidades pobres como El Salvador.
Um processo natural que aconteceu e continua a acontecer em todo mundo Ă©: surfistas vĂŁo explorar uma regiĂŁo por conta das ondas â eles se fixam em lugares bonitos, pobres e com ondas boas, geralmente vilarejos de pescadores â essas comunidades se desenvolvem atrĂĄves do turismo e do capital de fora que os surfistas fomentam.
Existem infinitos exemplos disso, mas se atendo ao Brasil poderĂamos citar Maresias, Saquarema, ItacarĂ©. Em El Zonte, essa conexĂŁo gerou o embriĂŁo para o primeiro paĂs adotar o Bitcoin como moeda oficial.
Fonte: Livecoins