Bia Kicis na CCJ é a 1ª piada de mau gosto do consórcio Bolso-Lira
Se não for bode na sala, desses que um recuo estratégico gera alívio e aceitação de qualquer opção menos ofensiva, a indicação de Bia Kicis (PSL-DF) para comandar a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara representará um enorme salto no processo de desertificação institucional no Brasil. Representará também um foco permanente de tensão e instabilidade.
Kicis é o puro suco do extremismo e da vassalagem bolsonarista. Torcido e retorcido, tudo o que pensa e fala se resume a ódio --não aquele que corrói por dentro, mas o que destrói o que encontro ao redor.
Dias atrás, quando o governo do Amazonas recuou em seu decreto de lockdown --a última cartada para evitar a explosão de casos de contaminação por coronavírus na região, e por consequência o colapso no sistema de saúde que resultou em falta de UTI e até cilindros de oxigênio-- a deputada foi a público celebrar a construção da cova funda para onde os amazonenses fatalmente seriam lançados. “A pressão do povo funcionou em Manaus. O governador voltou atrás em seu decreto de lockdown. Parabéns, povo amazonense, vocês fizeram valer seu poder”, escreveu ela em 27 de dezembro. Dois dias depois o sistema de saúde local colapsou.
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Pode-se dizer de tudo um pouco da futura líder da mais importante comissão da Câmara --responsável por analisar a constitucionalidade de todos os projetos que tramitam na Casa, inclusive os pedidos de impeachment -- menos que não é uma deputada ativa.
Só em 2020, ano marcado pela pandemia, a deputada apresentou 37 projetos, segundo um levantamento na página de atividade legislativa da Câmara. Alguns bastante urgentes. Um equipara o tratamento jurídico dispensado aos regimes totalitários nacional-socialistas (nazistas) e comunistas em território nacional, vedando sua apologia e propaganda.
Outro estabelece o sexo biológico como o único critério para definir o gênero dos atletas em competições esportivas no país.
Outro ainda acrescenta um artigo à Lei do Marco Civil da Internet que proíbe os provedores de plataformas digitais de remover conteúdos publicados por seus usuários, a não ser por decisão judicial.
Na pandemia, ela já pediu a revogação dos artigos que dispõem sobre o uso obrigatório de máscaras de proteção individual.
E, como resposta às restrições de circulação decretadas durante a pandemia, propôs que fosse caracterizada como crime de responsabilidade e abuso de autoridade a “violação de direitos individuais constitucionais durante tempos de paz, impedindo a liberdade de locomoção e o exercício de outras garantias”.
Com outros deputados da base bolsonarista, Kicis já requereu uma moção de repúdio da Câmara ao que chamava de “omissão” do governo chinês, a quem o Brasil recorreu para obter insumos da vacina, “acerca do potencial de gravidade do novo coronavírus, causador da pandemia de covid-19”.
Também propôs que fossem vedadas as concessões de liberdade provisória ou de prisão domiciliar aos presos ou aos adolescentes recolhidos em estabelecimentos penais ou socioeducativos motivadas pela pandemia do coronavírus. A explosão de casos tornou os presídios brasileiros em um território propício para propagação do vírus, o que afetou a saúde física e mental inclusive dos agentes penitenciários.
Quando a indicação de Bia Kicis para a CCJ foi anunciada, muitos lembraram que a deputada é investigada no inquérito das fake news, conduzido pelo Supremo Tribunal Federal, e que ela fez de suas redes sociais uma trincheira contra as medidas de distanciamento social e recomendações das autoridades sanitárias e científicas. Ela também é citada como uma das patrocinadoras dos atos antidemocráticos realizados em Brasília contra integrantes da Câmara e do Supremo.
Até pouco tempo, sob a presidência de Rodrigo Maia (DEM-RJ), a Câmara era ainda o freio gasto, mas ainda ativo, ao avanço da pauta extremista de Bolsonaro, que tem no armamentismo, na omissão sanitária e no desmonte da pauta ambiental alguns dos pontos centrais.
A eleição de Arthur Lira (PP-AL) deixou em dúvida se a joint-venture com o centrão era um casamento de conveniência ou ritual de conversão. A entrega da CCJ a uma deputada que entende serem as Forças Armadas, e não o STF, o poder moderador no país, e que um golpe ou intervenção militar é aceitável caso o presidente não possa governar, é a pré-visualização mais clara do que o Congresso pode se transformar antes de se transformar, a exemplo do que já ocorre no Executivo, em um deserto.
A antessala está preparada. Com as chaves da CCJ, Kicis poderá transformar a comissão num incinerador de tudo o que pode ameaçar a livre vontade do presidente. Mesmo que essa livre vontade seja a asfixia total do sistema de pesos e contrapesos que compõe o Estado democrático de Direito.